Sunday, December 27, 2009

MULHERES CAÇADORAS (ou, Porque as Mulheres não Caçam) (da série Tudo Conto)


Nina - Alguém já localizou o bando?
Débora - a Margô é que ficou de fazer isso.
Nina - e aí, Margô?
Margô - tô cuidando do Júnior.
Nina - caramba, ele já está com cinco anos!
Margô - é, mas tá precisando de mim.
Débora - você não podia ter deixado ele em casa?
Margô - você deixou os seus?
Nina - enfim, ninguém foi localizar o bando...
VÁRIAS - Não.
Nina - droga, assim não dá. Cadê a Eugênia?
Marluce - saiu correndo, o Zeca esta indo na direção do ninho das cobras.
Nina - você não segurou ele?
Marluce - como, se estou cuidando dos meus?
Nina - droga, Marluce, você tinha que trazer os 10?
Marluce - iria deixar com quem?
Nina - e o inútil do seu marido?
Marluce - saiu pra beber.
Nina - bem, só para contabilizar, o bando não foi localizado e a Eugênia, que deveria aprontar as lanças, foi atrás do Zeca. Alguém pelo menos afiou as pontas das lanças? (nenhuma resposta). Nós viemos caçar com as pontas rombas?
Débora - é, né? Eu tava cuidando dos meus.
Nina - e eu estava cuidando dos meus! Nós não combinamos que cada uma faria uma tarefa?
TODAS - Alôoo, todas nós temos MUITAS tarefas.
Nina - gente, assim não dá. Pelo menos trouxeram as armadilhas de coelhos? Não?? Graça, você não ficou encarregada?
Graça - mas eu tive que cerzir as roupas de todo mundo. E polir os escudos, dar brilho, fazer rendinha. Você acha que nossos sapatos estão brilhando por conta de quê? (começa a chorar).
Vanilda - calma, Graça, ela não está te criticando.
Graça (soluçando muito) - é tudo eu, tudo eu.
Hermenegilda - vamos pelo menos pegar umas carcaças.
AS OUTRAS - eca!
Nina - e as redes de passarinhos?
Maria - estavam com furo, velhas, caidinhas, eu não quis trazer.
Nina - era só você remendar.
Maria - com aquelas agulhas todas arregaçadas? Nan, nan, nan, eu não.
Nina - Maria, preste atenção, como vamos alimentar a tribo?
Maria - poderíamos caçar uns tubérculos, pelo menos eles não se movem nem mordem a gente.
Hermenegilda - essa é demais, hem Maria?
Graça - vamos levar umas frutas.
Débora - de novo? O mês inteiro nós levamos frutas.
Rosa - ou as crianças podem pegar ovos, elas são ágeis em subir nas árvores.
Nina - é, mas na semana passada duas quebraram ossos.
E assim, pela 16ª lua consecutiva (ou mês) as mulheres voltaram sem a caça.

Serra, domingo, 27 de dezembro de 2009.
José Augusto Gava.

Tuesday, December 15, 2009

A Bomba H do Maranhão (da série Tudo Conto)


Para fazer trocadilho, a notícia caiu como uma bomba e a imprensa ficou ouriçadíssima, quem iria imaginar que o Maranhão estivesse avançado a ponto de fabricar a Bomba H? O Brasil no seletíssimo clube dos atômicos? Não dá para imaginar.
As equipes nacionais de jornalistas foram despachadas às pressas, atabalhoadamente, enquanto os jornalistas estrangeiros cobravam antigos favores de amortecimento das notícias contra Lula, contratavam intérpretes. Os vôos para São Luís estavam repletos, gente fazendo fila nas áreas VIP, telefonemas desesperados, pauzinhos sendo mexidos, ninguém queria perder tal evento.
Quando na universidade federal souberam do fuxico, do tititi ficaram estarrecidos.
PROFESSOR – onde essa gente está com a cabeça, uma coisa tão simples, pra quê tanta confusão?
OUTRO PROFESSOR – sei lá, Nat (Natanael), cada um tem um jeito de ser. É bom para a escola de engenharia, faz propaganda, deixe vazar.
NATANAEL – fale você então com o reitor, organize a visita, vê se não vão quebrar os laboratórios. Pegue o Dan (Daniel) e o Roberval, chame os guardas, toca pra frente.
Dias depois, lá vai o grupo.
Roberval vai guiando.
ROBERVAL – por aqui, vamos lá nos fundos.
JORNALISTA (muito nervosa e excitada, agradecida por a terem deixado fazer parte) – o laboratório é grande?
ROBERVAL – como é o nome da senhora?
JORNALISTA – Gina.
ROBERVAL – Gina?
GINA – é, Gina.
ROBERVAL – Dona Gina (pareceu outra coisa, as pessoas riram um pouco, disfarçaram), é médio, nem grande nem pequeno (mais risos).
JORNALISTA 2 – eu pensava que esses laboratórios eram enormes.
ROBERVAL – não, nem tanto, mas não chegamos de pronto à Bomba H, começamos com a Bomba A.
Ao redor as pessoas balançam as cabeças em assentimento.
JORNALISTA 3 – é lógico, de A até H.
JORNALISTA 4 – pretendem avançar?
ROBERVAL – claro, isso é só o começo.
A emoção toma os presente, o Maranhão dando uma lição ao Brasil e ao mundo.
ROBERVAL – já estamos muito além da H, já chegamos à N.
GINA – Bomba N, caramba! De nêutrons!
ROBERVAL (sem entender) – claro, bomba N, depois vamos pra frente, não vamos esmorecer.
Os jornalistas brasileiros da comitiva incham de orgulho, os estrangeiros sussurram pasmados. A comitiva avança, chega a uma sala, Roberval pede ao guarda para abrir. Entram, não há ogivas nem nada.
JORNALISTA (à socapa) – tão compacta assim? Está em alguma bancada?
ROBERVAL (entrando e se dirigindo à bancada) – sim, lógico, aqui está ela (vê-se uma bomba de irrigação).

Serra, sábado, 31 de outubro de 2009.
José Augusto Gava.

Escola de Boquete (da série Tudo Conto)


Dois rapazes chegam com bolas de basquete ao clube e vão jogando-as no chão, como é característico.
Adiante há um punhado de homens sobre pedestais, como os de piscina, de onde pulam os atletas; e abaixo deles, de cada um, para cada qual há uma mulher. Os homens são filmados por trás, mostrando as mulheres adiante deles.
RAPAZ UM – onde é a quadra?
TREINADOR – que quadra?
RAPAZ DOIS (espichando o pescoço) – de basquete, é lógico.
HOMEM – que basquete?
RAPAZ DOIS – basquete, caramba.
OUTRO HOMEM – quem são esses caras, você conhece, Matilde?
MATILDE (com a boca cheia) – eu dão.
MULHER – bô, Madilde, se concentra, bôrra.
MATILDE - dão enche, Zoraia, o Barcos que perguntou.
MARCOS – claro, o que esses caras tão fazendo aqui? Quem deixou o portão aberto?
TREINADOR – só pode ter sido aquela besta do Seu Geraldo.
RAPAZ UM – e aí?
TREINADOR – aqui não tem nada de basquete não, meu filho, aqui é outra coisa.
RAPAZ UM (inocentemente) – que outra coisa?
TREINADOR (bravo) – Como disse Jesus, quem tem olhos de ver que veja.
RAPAZ DOIS – não estou entendendo nada.
TREINADOR (mais bravo ainda) – pôrra, garotada, vá lá fora ler.
OS DOIS RAPAZES (saem e volta) – é mesmo. Podemos participar?
TREINADOR – vocês são sócios?

Serra, sábado, 21 de novembro de 2009.
José Augusto Gava.

Sunday, October 18, 2009

A Porta de Xangrilá (da série Tudo Conto)


Negorodin olhava a borboleta.
Era totalmente negro e seu nome significava Negro-Ébano, como o Pai Adão que há tanto tempo viveu.
Se Negorodin vivesse na África ou até mesmo em muitos outros pontos da Terra nada haveria a estranhar, mas ele estava no Tibete, logo abaixo da majestosa construção do templo Potala em Lassa, a capital. Acima deles pairava o Potala, a Porta.
Negorodin olhava a borboleta com seus olhos aguçados. Perto dele Tissu, um garoto de 11 anos, brincava. Tissu não olhava a borboleta, porque era um garoto afoito, queria pular. Negorodin parecia um jovem de 17 anos, mas longe estava de ter somente isso. Tinha visto o pai de Tissu nascer e de criança tornar-se adulto. Antes disso o pai do pai, o avô, e o pai do avô, o bisavô e muitos mais antes disso, nas aldeias em volta.
Negorodin tinha 287 anos.
Porém ele não era ainda considerado adulto, apenas um jovem em processo de aprendizado. Nem muito menos um ancião, pois se passariam milênios antes que entrasse no grupo pequeno que controlava Xanadu ou Shangrilah ou Shambalah, enfim, a cidade dos imortais profundamente cravada dentro da terra, sob o solo do Potala que os imortais haviam feito construir para ocultar a entrada.
Negorodin era negro, mas havia brancos, amarelos, vermelhos, todos os que haviam dado origem às raças. A colônia dos puros não era grande, apenas alguns milhares, mas tinha grande poder, pois os haviam desenvolvido ao longo dos milênios, desde quando o Pai havia morrido há quase cinco mil anos. Estando no ano 5769 da chegada do Pai a este mundo e tendo ele morrido com 930 anos, tinham se passado 4.839 anos desde a dor inacreditável de sua perda.
Negorodin era jovem, mas ouvia os velhos contarem sobre o episódio de Enoch, que viveu apenas 365 anos e foi consumido pela terrível doença matadora dos antigos, a lepra que D’us lhe pôs e que, por mais que tratada fosse, nunca podia ser curada.
Aqueles que ficaram do lado de Enoch, os impuros, acabaram por decair aos 120 anos no máximo, ao passo que os desejosos de afastamento, os puros, migraram e começaram a viver mais e mais anos daqueles tirados dos outros. As duas facções começaram a lutar.
Tissu brincava e pulava e ria aos pés de Negorodin, mas Negorodin pensava, pois isso faziam os puros, o tempo inteiro, quase. Pensavam dia e noite e influenciavam os povos de todo o mundo. Por vezes iam visitar uns e outros, era após era, consertando aqui e ali, mas nunca conseguiam vencer definitivamente os impuros e sua multidão de filhos de vida breve.
Algo os sustentava.
A inexplicável escuridão da pele estava protegida pela vigilância dos monges, mesmo nestes tempos de presença chinesa. De qualquer modo, ele poderia influenciar suas mentes frágeis e eles veriam o que fosse para ver. Ou os antigos o fariam, não havia o que temer.
A borboleta voava e Negorodin, com seus sentidos apurados observava o extraordinário vôo do inseto de vida curtíssima. Mal postas as coisas, os humanos de curta vida eram assim também, 120 anos no máximo, o que era isso? Um piscar de olhos. Metade, para a maioria, nem tanto, mesmo agora com sua tecnociência tendo avançado um pouco, mercê de alguma ajuda aqui e acolá.
Tissu brincava, sem saber das complexidades. Que vida feliz, entretanto! Tissu sabia que Negorodin era imortal e isso não o aborrecia em nada. Era uma de todas aquelas crianças e adultos protegidos pelo pensamento vigilante dos imortais.
O pai de Negorodin, Triçucarin, D’us-carinhoso, tendo pouco mais de 15 séculos, também não participava do Conselho dos Mais Velhos, mas mesmo assim tinha acesso a alguns pensamentos mais profundos. Negorodin gostava de conversar com ele e passavam dias, e mesmo meses, seguindo trilhas.
Ah, Negorodin olhava a borboleta caprichosamente vagar, enquanto Tissu ia pelas redondezas pulando aqui e acolá. Logo seria um rapaz, receberia quem sabe as ordens, se tornaria monge adulto, velho e morto. Negorodin ainda veria centenas de gerações crescerem e morrerem, mas essa vida curta trazia lá suas lições.
Negorodin estendeu a mão com a palma virada para cima e a borboleta delicadamente pousou nela...

Vitória, domingo, 18 de outubro de 2009.
José Augusto Gava.