Sunday, October 18, 2009

A Porta de Xangrilá (da série Tudo Conto)


Negorodin olhava a borboleta.
Era totalmente negro e seu nome significava Negro-Ébano, como o Pai Adão que há tanto tempo viveu.
Se Negorodin vivesse na África ou até mesmo em muitos outros pontos da Terra nada haveria a estranhar, mas ele estava no Tibete, logo abaixo da majestosa construção do templo Potala em Lassa, a capital. Acima deles pairava o Potala, a Porta.
Negorodin olhava a borboleta com seus olhos aguçados. Perto dele Tissu, um garoto de 11 anos, brincava. Tissu não olhava a borboleta, porque era um garoto afoito, queria pular. Negorodin parecia um jovem de 17 anos, mas longe estava de ter somente isso. Tinha visto o pai de Tissu nascer e de criança tornar-se adulto. Antes disso o pai do pai, o avô, e o pai do avô, o bisavô e muitos mais antes disso, nas aldeias em volta.
Negorodin tinha 287 anos.
Porém ele não era ainda considerado adulto, apenas um jovem em processo de aprendizado. Nem muito menos um ancião, pois se passariam milênios antes que entrasse no grupo pequeno que controlava Xanadu ou Shangrilah ou Shambalah, enfim, a cidade dos imortais profundamente cravada dentro da terra, sob o solo do Potala que os imortais haviam feito construir para ocultar a entrada.
Negorodin era negro, mas havia brancos, amarelos, vermelhos, todos os que haviam dado origem às raças. A colônia dos puros não era grande, apenas alguns milhares, mas tinha grande poder, pois os haviam desenvolvido ao longo dos milênios, desde quando o Pai havia morrido há quase cinco mil anos. Estando no ano 5769 da chegada do Pai a este mundo e tendo ele morrido com 930 anos, tinham se passado 4.839 anos desde a dor inacreditável de sua perda.
Negorodin era jovem, mas ouvia os velhos contarem sobre o episódio de Enoch, que viveu apenas 365 anos e foi consumido pela terrível doença matadora dos antigos, a lepra que D’us lhe pôs e que, por mais que tratada fosse, nunca podia ser curada.
Aqueles que ficaram do lado de Enoch, os impuros, acabaram por decair aos 120 anos no máximo, ao passo que os desejosos de afastamento, os puros, migraram e começaram a viver mais e mais anos daqueles tirados dos outros. As duas facções começaram a lutar.
Tissu brincava e pulava e ria aos pés de Negorodin, mas Negorodin pensava, pois isso faziam os puros, o tempo inteiro, quase. Pensavam dia e noite e influenciavam os povos de todo o mundo. Por vezes iam visitar uns e outros, era após era, consertando aqui e ali, mas nunca conseguiam vencer definitivamente os impuros e sua multidão de filhos de vida breve.
Algo os sustentava.
A inexplicável escuridão da pele estava protegida pela vigilância dos monges, mesmo nestes tempos de presença chinesa. De qualquer modo, ele poderia influenciar suas mentes frágeis e eles veriam o que fosse para ver. Ou os antigos o fariam, não havia o que temer.
A borboleta voava e Negorodin, com seus sentidos apurados observava o extraordinário vôo do inseto de vida curtíssima. Mal postas as coisas, os humanos de curta vida eram assim também, 120 anos no máximo, o que era isso? Um piscar de olhos. Metade, para a maioria, nem tanto, mesmo agora com sua tecnociência tendo avançado um pouco, mercê de alguma ajuda aqui e acolá.
Tissu brincava, sem saber das complexidades. Que vida feliz, entretanto! Tissu sabia que Negorodin era imortal e isso não o aborrecia em nada. Era uma de todas aquelas crianças e adultos protegidos pelo pensamento vigilante dos imortais.
O pai de Negorodin, Triçucarin, D’us-carinhoso, tendo pouco mais de 15 séculos, também não participava do Conselho dos Mais Velhos, mas mesmo assim tinha acesso a alguns pensamentos mais profundos. Negorodin gostava de conversar com ele e passavam dias, e mesmo meses, seguindo trilhas.
Ah, Negorodin olhava a borboleta caprichosamente vagar, enquanto Tissu ia pelas redondezas pulando aqui e acolá. Logo seria um rapaz, receberia quem sabe as ordens, se tornaria monge adulto, velho e morto. Negorodin ainda veria centenas de gerações crescerem e morrerem, mas essa vida curta trazia lá suas lições.
Negorodin estendeu a mão com a palma virada para cima e a borboleta delicadamente pousou nela...

Vitória, domingo, 18 de outubro de 2009.
José Augusto Gava.