Monday, June 10, 2013

Kit Enterro (da série Tudo Conto)


O deputado consultou a Internet e soube que desde a Constituição Federal brasileira de 1988 já tinham passado 3,6 milhões de leis nacionais, estaduais e municipais. Então ele, na sua inocência de novato, perguntou-se: “por quê não eu?” E ele mesmo, já que era inocente, respondeu-se com o máximo de alegria que “eu sim!”
Que lei fazer?
Leis úteis todos tentam fazer e 99 % é pura porcaria, sem o menor sentido socioeconômico. Ou são leis destinadas a determinadíssimas empresas, seguindo fielmente os retratos delas, não cabendo na lei quase nenhumas mais, ou são leis dando nome de rua, nisso o deputado era inocente, mas não era bobo: leis como as primeiras precisam de patrono e ninguém o tinha procurado com uma mina daquelas (era seu sonho), ainda, ou como as segundas, que só têm o alcance da família e dos amigos do logradouro. O deputado inocente queria ser famoso para deixar de ser inocente, para cair na gandaia e sair com os ricos, os famosos, os poderosos.
Há também leis do “alto clero”, os deputados mais famosos ou poderosos ou ricos, os 5 % mais de cima – essas ele não conseguiria passar, dependeria de muitas alianças, que ele não tinha. Transitar no “baixo clero” ele não queria, era a ralé, aí era se rebaixar muito, aquela multidão de 70 % ou mais. Ou 80 %, segundo outras avaliações. Então, sobravam 25 a 15 % e é ali que ele se encaixaria.
Propôs então o “kit enterro”, uma quantidade de coisas que seriam obrigatória em todos os automóveis e caminhões do Brasil. Constaria de pá dobrável, a caixa de embalar, uma cruz para quem fosse cristão (com opção de comprar à parte o símbolo de sua religião), uma bíblia compacta (ou o alcorão ou o que fosse comprado separadamente, porque ainda que o Estado fosse leigo sempre é bom respeitar os eleitores), uma vela (para guiar os caminhos) com caixa de fósforos ultra-seguros, frasco pequeno de água benta (não fossem se ofender as outras religiões: é só não comprar, caramba!) e vários outros objetos de pequena monta. Sendo 60 milhões de veículos no Brasil, certamente isso iria implementar várias indústrias, e que havia de mal se os amigos e parentes (dos quais ele era sócio) estavam justamente nessa área, pois não é o liberalismo? Cada um que fosse liberal como pudesse.
Pode parecer idiota. PODE ATÉ SER IDIOTA, dane-se, mas que é que tem, um deputado federal do Espírito Santo não quis passar lei para favorecer a transformação de homossexuais em heterossexuais? Fiz pesquisas, tá bom? E não teve um estado americano que fez lei para dar ao transcendental PI (π – 3,141592...) o valor bíblico de 3? SE os americanos, que são tão avançados, podem ser idiotas, por que não nós? Vamos sim, ser tão idiotas quanto eles! Afinal de contas, o terceiro mundo tem de copiar o primeiro. É a ordem das coisas.
A argumentação do deputado era insistente, se não fosse lógica nem acurada. Ele foi citando exemplos de leis idiotas dos deputados, por exemplo, o kit de primeiro socorros e tantas outras. Mas mesmo assim não passou, droga.

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