Monday, June 10, 2013

Separação (da série Tudo Conto)


                               Alfredo e Alfredo se conheceram em certo dia de outubro, dia de primavera, "a prima-Vera tinha apenas chegado", eles riram.
                               Passaram a compartilhar tudo, não ficavam um instante separados. Eram carne-e-unha, inseparáveis mesmo. Aonde um ia o outro ia também. Eram o oposto um do outro, mas justamente isso era motivo de alegria, porque a distância podia ser preenchida pelo que um sabia e o outro não. Viveram assim em idílio por uns três anos e meio. A coincidência suprema de serem da mesma cidade e até do mesmo bairro, além de terem a mesma idade, 36, quando souberam um do outro, os fazia felizes. Viviam se elogiando, como fazem os artistas cariocas e brasileiros em geral.
                               Porém, certo dia Alfredo achou que Alfredo tinha sido deselegante com uma amiga, uma palavra malposta, um palavrão na hora errada tinha começado a inimizade dos dois. Ademais de desbocado Alfredo não tinha nenhum escrúpulo em transar com qualquer mulher bem na frente dele. Alfredo, não, Alfredo era cuidadoso; esperava Alfredo dormir para sair e se encontrar com as namoradas. Sempre fora assim. Quando Alfredo descobriu ficou puto.
                               - Porra, cara, você é traíra mesmo, né?
                               - É que você é muito desagradável, Alfredo. Por quê você tem que atacar as pessoas?
                               - Não tenho que te dar satisfação, não, vá tomar no cu, porra.
                               - É porisso mesmo que eu não gosto mais de sair com você.
                               Então, de choque em choque eles foram ficando cada vez mais estranhos um ao outro. Moravam na mesma casa, mas não se toleravam. Brigavam com uma constância de deixar os vizinhos encabulados, o Alfredo apaziguador e o Alfredo fazendo de tudo para brigar, xingando, batendo nas paredes, até que um dia os vizinhos incomodados com a barulheira chamaram a polícia. Não teve jeito de separar os dois, mas eles prometeram baixar a bola. O Alfredo sofria, coitado, com a truculência do outro.
                               - Vai se fuder, seu viado, cê parece boiola. É uma frozinha, mesmo. 
                               Até falar errado o Alfredo falava, para grande constrangimento do Alfredo, que sempre cuidara de falar um português o mais correto possível, até em conversas de mesa de bar.
                               Aliás, ficara insuportável ir com o Alfredo aos bares.
                               Os amigos de um e do outro reclamavam.
                               - Porra, Alfredo, esse Alfredo é um chato de galocha, cara, manda ele embora.
                               Ou, então:
       - Alfredo, fica quieto, merda, cê tá atrapalhando, vá se juntar com a sua turma de frutinhas.
                               Quando era o Alfredo que ia às reuniões da turma do Alfredo, era esta que não agüentava.
                               - Alfredo, o Alfredo não gosta de vinho, não gosta dos nossos tira-gostos, não gosta do nosso papo, por quê você traz esse cara?
                               Virou um inferno total.
                               Um dia alguém sem mais nem menos falou em separação.
                               Todo mundo achou impossível, apesar de tudo, mas a idéia permaneceu e foi evoluindo, os amigos juntando lenha na fogueira.
                               - Ô, Alfredo, esse cara não te merece, larga dele.
                               Até passaram a chamar um de Alf e o outro de Fredo. Alf era o “chato demais”. Fredo era o sujo, o porqueira, o ordinário. Foi só dar nomes separados para a idéia de separação ir sendo incrementada até o ponto em que os dois não se suportavam mais, tentavam viver em horários opostos, um de dia e outro de noite. Que não poderia continuar assim não poderia mesmo, porque o dia foi dividido em duas porções de doze horas. Descontando quatro de sono, mais o tempo de tomar banho, as necessidades fisiológicas, trânsito, sexo e outras, como é que ficava o trabalho? O cansaço estava se tornando cada vez maior.
                               Até que chegou o tempo em que Alfredo e Alfredo só concordavam em uma coisa: viver junto não dá mais.

                               Procuraram uma clínica neuropsicológica e promoveram mesmo a separação. O problema maior nem foi clonar um corpo, o que já era relativamente trivial; o problema foi separar as memórias comuns – quem iria ficar com o quê, de antes dos 36? O que era de um e o que era de outro? Se fosse dada a mesma memória a ambos eles teriam de conviver com os mesmos amigos de antes daquele ano, sem falar nos pais e parentes: como ir visitar mamãe e papai e encontrar o detestado Alfredo lá? Sem falar na quantidade de psicólogos, psiquiatras e psicanalistas que foi preciso reunir para fazer a separação.

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