Monday, April 22, 2013

Assembléia de Deus (da série Tudo Conto)


Instalada a Assembléia, Deus cedeu a palavra.
ANJO-DEPUTADO – Senhor presidente, para esta primeira Assembléia que o Senhor, em nobre majestade, decidiu abrir, quero chamar atenção, data vênia, que o Senhor é também Juiz Supremo (e único), Imperador Vitalício do Céu, Promotor de Justiça e Presidente desta Casa de Leis universais. Sem querer ofender, peço sua consideração, nobre Senhor, para fazer ver que não temos, nem nunca tivemos, eleições.
OUTRO ANJO-DEPUTADO – o nobre colega me concede um aparte?
ANJO-DEPUTADO (a contragosto) – Sim, claro, mas não se demore, por favor.
OUTRO – Longe de nós contestarmos as decisões sempre perfeitas do nobre Senhor, mas quando vamos ter eleições diretas? O Senhor é tetra-presidente!
ANJO-DEPUTADO – nobre colega, mas era essa mesma a minha linha de raciocínio!
OUTRO – pensou mas não disse.
ANJO-DEPUTADO – então vou retomar meu raciocínio.
OUTRO – o nome colega não pode partilhar seu tempo?
ANJO-DEPUTADO – posso, mas não quero. Inscreva-se e use seu próprio tempo.
Um deputado do PT (partido dos anjos-trabalhadores) do Céu se exalta.
DEPT – Ei, as bases angélicas querem ser ouvidas. Nós fizemos 300 séculos de debates, queremos falar.
ANJO-DEPUTADO – Senhor, por favor, imponha ordem, é preciso que eles se inscrevam.
DEPT – inscrição uma ova! Isso é coisa de anjo-deputado burguês, que mora perto do centro do Céu, quem mora nas periferias e nas invasões do Céu quer ser ouvido.
ANJO-DEPUTADO – assim não dá, nobres colegas, isso é esculhambação. Cale a boca, seu otário!
DEPT – cale a boca você, seu oportunista bajulador.
OUTROS ANJOS-DEPUTADOS – quem deixou esse terrorista entrar?
DEPT e outros anjos-vermelhos – Terrorista é a mãe, seu filho-de-puto.
VÁRIOS ANJOS-DEPUTADOS ESCANDALIZADOS – xingou Deus, xingou Deus! Vamos matar esses cornos. Decaídos, opositores!
Começa uma porradaria geral, são raios coriscando.
Deus encerra essa primeira oferta de liberdade e dissolve a Assembléia.

Aquecimento Global (da série Tudo Conto)


Os cientistas estavam preocupados.
Tudo indicava estar a temperatura subindo muito, vários graus, com o derretimento das geleiras e exposição de largas porções da Tiar.
A glaciação, iniciada mais de 90 milans antes da queda da Grande Nave, dava visíveis mostras de estar recuando. Os mares subiam rapidamente, mais de seis poles por ano. As previsões eram de choveria fortemente mais 600 ans além dos 400 até então. Já sabíamos que com um milan de chuvas os mares fatalmente subiriam mais de seis mil poles. Tínhamos conhecimento de que porções enormes das costas seriam inundadas, culturas teriam de ser movidas para dentro dos continentes muitas dezenas de kum, agora mesmo e sem qualquer garantia, mas avançar na visão é muito mais terrível que ter apenas compreensão teórica. Quanto trabalho perdido, tantas cidades desaparecidas, tantas vidas talvez, se não se socorresse a tempo! Muitos não querem sair, preferem morrer.
As máquinas estão a postos em todo o mundo, trabalhando furiosamente. Muito já foi feito em quatro segures, mas muito mais terá de ser realizado nos seis seguintes. Os cálculos não deixam margem à dúvida.
A Grande Nave, estacionada sobre os rochedos marinhos no Trópico Superior, viu a água subindo, com sua enorme massa cobrindo porções cada vez maiores das bordas, fazendo recuar em círculos concêntricos toda gente das cidades costeiras. Embora grande, mais de 400 kuns de diâmetro, fatalmente será coberta pelas águas, pois seu topo se situará, ao final do processo, muitos nits abaixo de onde presumidamente ficará a lâmina d’água oceânica. E quando toda aquela água cobrir a Grande Nave Atlante o peso extraordinário acima dela pressionará os picos abaixo dela, esmagando-os e fazendo-a rolar para dentro do oceano.
Os senhores continuavam adormecidos, mesmo após nove milans. Inquestionavelmente mergulharão nas profundezas e nada se poderá fazer. Os robôs, por si sós, sem auxílio de seus senhores, não poderão tomar providências porque não tem tanta autonomia: no máximo podem e poderão, como fizeram, desenvolver os nativos de toda parte, cedendo-lhes parte da avançada tecnociência na expectativa de um dia poderem cobrar auxílio. Já viveram por nove milans depois da derrubada da Grande Nave e continuarão operando nos bastidores por 20 ou 30 milans se necessário for até a humanidade ter adquirido maturidade para proceder ao resgate da Grande Nave.
De pronto, estamos levando a cultura Atlante segundo a Rosa dos Ventos para o norte, o sul, o leste e o oeste desde dois segur atrás. O grande continente localizado a oeste parece prometedor, com as grandes montanhas na extremidade oeste podendo comportar muitos esconderijos. Mesmo se as vagas gigantescas, geradas pelo calor muito maior, provocarem tufões e furacões, destruindo assim milhares de cidades, algo se poderá fazer, preservando parte de nossa cultura central nas altas montanhas do grande continente do leste ou na terra central ou nas montanhas do sul.
Os barcos, ainda que reforçados, não suportarão o embate na hora derradeira e pouco se poderá levar da Grande Nave, até porque os robôs não deixarão. Mergulhará mesmo tudo no fundo do mar. Meia dúzia de cidades será criada ao fim das chuvas, depois do dilúvio de águas, onde os navios pararem, o mais alto possível, espero. Espalharemos ao máximo. Os robôs nos negarão sua tecnociência e esta de que tomamos conhecimento fatalmente declinará nas mãos de nossos descendentes, de modo que devemos deixar sinais, conforme os planos. Só com o que sabemos é impossível preservar a cultura.
O poder que derrubou a Grande Nave não deixará os senhores acordarem até estar apaziguado, conforme nos foi dito. As esperanças mínguam, senhores e senhoras. Em algumas centenas de ans a Grande Nave mergulhará na escuridão. Talvez o poder superior tenha precipitado o fim dos gelos visando isso, não sabemos. Seguramente vamos irradiar, mas sem a tutela dos robôs é inevitável o decaimento. Sombras persistirão, sem dúvida, mas serão só sombras dessa cultura de 90 segures. Por mais que deixemos, por mais cuidadosos que sejamos, 200 ou 300 segures são demais. Eles dizem que mais provavelmente bastará metade disso, 100 ou 150 segures, mas não sejamos otimistas, todos estaremos mortos, não haverá qualquer lembrança de nós. Nossa última esperança reside nas grandes cavernas e nas altas montanhas, aonde as águas não chegarão, antes de produzirem o novo desenho das bordas continentais.
Por mais que choremos, esse é o cenário. Sinto lhes dizer.
Vale lembrar o que significaram esses 90 segur desde a queda.
O quanto nosso mundo evoluiu, desde quando não passávamos de gente abrutalhada lavrando armas de pedra.
E pensar que o peso da água, quando se der o desequilíbrio entre a massa acima da Grande Nave e sustentação abaixo, fará tudo entrar em colapso em questão de daas, raaras, talvez. Um amanhecer de Sala, um anoitecer e será o fim. É muito triste, senhoras e senhores, é muito triste. Ver nosso mundo regredir e mergulhar novamente na escuridão, é muito triste. Contudo, não temos o direito de chorar, devemos levantar nossas cabeças e prosseguir, tal como nos ensinaram os robôs, na esperança de que um dia o grande poder esteja pacificado e a Grande Nave possa ser reerguida. O anel de fogo do grande poder não permitirá o despertar dos senhores, eles continuarão congelados e dormindo por longos milans. São coisas grandes demais para nos preocuparmos. E, de qualquer modo, nos dizem os robôs, a Nave Mundo está lá fora vigilante.
Quanto aos robôs, alguns irão mergulhar no oceano junto com os senhores, outros acompanharão a humanidade, duradouros como são, caminhando entre a gente de volta à ignorância. Homens eternos, eles parecerão.
O que há mais a dizer nesta reunião nossa?
Para poupar o povo das dores maiores do conhecimento pouco lhes podemos dizer. Espero que os senhores e as senhoras sejam felizes em suas missões. Encontrem boas cavernas, embalem os objetos com todo cuidado e com o máximo de proteção, não sabemos quantos milans eles deverão enfrentar. Vedem-nos completamente, enterrem-nos bem fundo.
Confiança e fé no reconhecimento, no renascimento, é o que peço.

Apagando o Passado (da série Tudo Conto)


O Nilson teve idéia de colocar uma empresa.
Apagamento do Passado S.A.
Os amigos riram dele pra caramba.
- Porra, Nilson, de onde você tirou essa idéia?
- Cacete, Nilsinho, vô parar de andar contigo, cara.
Mas Nilson estava firme na idéia, ninguém conseguia tirar de cabeça. E explicava demoradamente.
- Gente, veja só, a quantidade de puta que quer casar, todos aqueles artistas de cinema e de TV que cheiravam ou cheiram ainda e querem passar por santos. Fiscais que roubaram pra caramba e entraram para as igrejas pentecostais. Juízes mergulhados na merda até o nariz. Políticos salafrários que assinaram leis canalhas.
O pessoal parou para escutar. Alguns até se ofereceram para ficar sócios. Robinho se adiantou.
- Nilson, como você vai fazer isso?
Já havia gente espichando o pescoço. Nilson explicou mais detidamente.
- Bem, vocês se lembram do quê do passado?
- Como assim?
- De quantas figuras históricas vocês lembram?
Nilson, que era historiador, foi discorrendo em detalhes as sordidezes do passado próximo e mais distante. Abriu o notebook e foi mostrando, as pessoas rodeando-o e ficando de queixo caído com a quantidade de podridão de gente que passava por pura.
- E isso numa época em que as pessoas escreviam em papel e não havia PowerPoint, agora nós podemos fazer de tudo, mentir online, full time. Se a pessoa nos contratar podemos ficar dia e noite apagando as notícias de toda parte, dia após dia, ano após ano até não restar nada. Aquilo que Stalin fez, só que em grande escala. Quando mais a apagar, mais caro.
- Podemos até inventar notícias (os amigos até já se sentiam parte da empresa que nem existia ainda).
- Isso não! Não vamos nos prostituir, antes de tudo honestidade na sacanagem. Honra entre bandidos: o que os bandidos mais prezam é o que não têm.
Nilson foi incisivo, taxativo.
- E como faremos isso?
Os carinhas já estavam até tirando os cheques na ânsia de participarem da empresa e dos lucros, que imaginavam imensos, tantos eram os sacanas nos governos e fora deles.
- Bem, vamos contratar hackers.
- Certo, mas do outro lado também há hackers, os governos os contratam, as grandes empresas, todo mundo.
- Merda, Manel, pensa um pouco: não vamos aonde não pudermos ir, não é? Toda precaução é pouca; ou recuamos ou cobramos mais e contratamos os hackers do outro lado.
- Quanto você acha que precisamos para começar?
- Uns 10 milhões, creio.
- Só?
O pessoal já estava crescendo os olhos.
- Bem, por enquanto. Quem tem isso?
- Ah, juntos é fácil.
Daniel, que estava calado, se meteu.
- Dou logo metade.
- Calma, gente, temos que contratar os advogados.
Ricardo também se manifestou.
- Conheço uns filhos de puta ótimos, aquele que ajudou o goleiro, lembram? Aquele que ajudou o pai e a mãe também é um corno das minhas relações. E aquele que conseguiu aqueles poucos anos para o matador da atriz, faz uns 15 anos, tão lembrados?
- Sim, claro (disseram todos). Boa idéia. Vamos deixar com o Ricardo.
- Contamos pros velhos?
- Nossos pais? Não, deixem os velhotes de lado. Logo estaremos mais ricos que eles e até eles vão nos contratar para apagar as patifarias, as amantes, os desvios de dinheiro, os paraísos fiscais.
- E há a contra-informação também. As falsas informações plantadas com o intuito de conflitar com a verdade. Os governos fazem muito isso. A ENRON fez isso para enganar os acionistas. Tá pra nós. Encobertar é a ordem do dia. Corporações deitam e rolam nisso.
Daí uniram as mãos no alto. E riram muito. Do jeito que há sacanas no mundo, pensavam eles, logos estaremos podres de ricos e contrataremos a nós mesmos para mentir e apresentar-nos como próceres da sociedade, como mecenas amados pelos artistas. Logo receberemos comendas e seremos comendadores.


A Religião do Estado (da série Tudo Conto)


O Estado decidiu colocar uma religião.
Uma religião-autarquia, não era empresa pública porque religião, enquanto empresa, já estava sendo praticada pelos protestantes.
E, depois, pegava mal, porque o Estado foi declarado leigo.
O Estado já cobrava mais de 80 tributos do povo, sobretaxando-o vergonhosamente, tomando tudo que era possível da parte de César, como Jesus admitira; agora, alguns ponderavam, porque não tomar também a parte de Deus? Aqueles desocupados (no bom sentido) de Brasília começaram a pensar, montaram workshops (que palavra horrível, a começar por work, trabalho, mas vá lá; seguida de shop, oficina – oficina de trabalho, aquilo dava arrepios nos mais puristas, que nunca tinham dado um dia de trabalho para a nação, feito Lulambão, argh!).
Por que não?
Deus não dava as caras há dois mil anos e até apareceu pichado nos muros da UFES “Jesus não vai voltar”.
Isso já levava a pensar naqueles outros 50 %.
Alguns diziam que o governo já levava 50 %, mas longe disso, pois não contavam a renda oculta, que era de 60 %; contando o invisível chegava a 20 ou 25 % no máximo, mas poderia chegar a 50 % de fato, como na Suécia (era tão bom ser avançado, mas o problema é que lá o governo oferecia serviços de alta qualidade – se houvesse um jeito de pegar 50 % como lá com serviços de baixa qualidade como no Brasil, seria um chuá).

CEASAR PARQUES E DEUS DARÁ (com que viveriam o povo e as elites eles não tinham pensado, mas também você não quer que eles pensem tudo, né?) NA 
MESMA PRAÇA, PARA ECONOMIZAR DINHEIRO DO CONTRIBUINTE.

PARTE DE CÉSAR
PARTE DE DEUS
50 %
50 %

Acontece que os governos já cobram impostos, como cobrar dízimo também? Uns foram a favor de acoplar o dízimo aos impostos como mais 10 %, mas outros temiam a resistência, já de si bastante grande. Incrível como o povo é ingrato e incoerente! Não seria tão mais justo juntar o leigo com o religioso num pacote só?
Outros perguntavam como os funcionários iriam se vestir, se de gravata e terno, com estola, ou se de batina. Como padres ou como pastores? Não era fácil enfrentar 50 mil empresas-igrejas adventistas em outras tantas denominações.
Como chamar?
RELES (Religião do Estado) dava ideia “de qualidade ordinária, digna de desprezo; grosseiro, insignificante”, como dizia o Houaiss eletrônico.
A presidanta deveria aparecer na capa como pastora?
Ou bispa?
Ou bisca?
OU, QUEM SABE, como cardeala? (Puxa, cara, nessa você se superou, ELA vai gostar pra caramba).
Ou papisa, sei lá (Aí já é exagero).
E os ministros, seriam cardeais doravante? (Já existem cardeais, não vamos nos repetir, de qualquer forma é marca registrada da Igreja). Mas podem ser ministros mesmo, só não podem ser ministros protestantes porque ELA não vai gostar. Terrorismo, não!
Essa coisa tá mais difícil do que pensamos.
Até pra tirar dinheiro das ovelhas é preciso dom.
Tosquiar ovelha depende de prática, mais do que teoria. Ser governo e coBRar inumeráveis tributos é até mais fácil, você sabia?
Tá cada vez mais difícil enganar os trouxas, porque há poucos trouxas e todo trouxa que há alguém já pegou.
É, falta trouxa.
É mesmo.
Temos de concluir que tá faltando trouxa.
É, cara, se houvesse mais trouxas seria mais fácil.
Agora você falou tudo, a gente poderia colocar uma fábrica de trouxas, uma TV, mais uma ou qualquer media, cinema.
Escola!
Gênio, toca aqui, é isso mesmo, escola do governo.
DEPOIS a gente coloca a religião do Estado.

A Reforma das Minhas Convicções (da série Tudo Conto)


Na mesa de bar o companheiro chegou, cumprimentou todo mundo um por um, abraçou alguns mais chegados, sentou-se e declarou bombasticamente:
- Gente, tou mudando minhas convicções.
O pessoal se olhou, estranhando muito.
- Será que virou boiola? 
- Logo o Dagoberto, que era macho pra caralho, virou folha.
- Se o Dag bichou, eu também vou fraquejar, Jesus Cristo.
O Ramuel tomou coragem e perguntou na bucha.
- Porra, Dagoberto, não vai dizer que você virou veado? Pra mim tudo bem, mas é que logo você?
- Não, gente, não é nada disso. Veja só. Eu não acreditava em morto-vivo, ria pra caramba daqueles palhaços do cinema com os braços e as pernas tortas, balançando e agora, vejam só, com mais de 50 anos, o que nós somos?
O pessoal concordou unanimemente.
- É mesmo, tudo morto-vivo.
- Tem razão, Dag.
- Depois, o seguinte: eu não acreditava em morte após a vida e esses dias morreu o João e nós continuamos vivos, então existe mesmo vida após a morte, né?
- É, de fato.
- Tem razão.
- Eu acreditava, pobre de mim, que os policiais estavam aí para caçar os ladrões e, no entanto, os ladrões como o Lalau, a Georgina, o Jader, o Sarninha, os amiguinhos do Lulambão estão todos soltos.
- Tu é o maioral, Dagoberto.
- Maioral, maioral, trimaioral.
- Isso não existe, Sid.
- Inventei agora, Dagoberto é o trimaioral. Pra classificar ele só isso.
- Pensei que algumas coisas eram impossíveis de acontecer, mas vejam o Lula apoiando a Roseana Sarney, o Collor e outros da mesma laia.
- Tô contigo, Dag, também reformei minhas convicções.
Os carinhas da mesa já tavam aplaudindo o Dagoberto.
- Porra, Dagoberto, de onde tu tirou isso?
- Muitos anos pensando.

A Pepita de Ouro (da série Tudo Conto)


O palestrante colocou uma laranja madura sobre a mesa:
- Encontrei essa pepita de ouro num pé de pepitas de ouro, chamado laranjeira (o telão do lado ia mostrando grandes imagens do que o orador ia falando ponto a ponto).
A plateia estava embasbacada. – Que vem a ser isso? 
- Também é chamado de “pé de laranja”.
E estendia o braço esquerdo na direção-sentido do telão.
- É uma pepita descascável, pode-se tirar a casa dela.
A plateia estava ao mesmo tempo estarrecida com a obviedade e tocada pela descoberta súbita, inefável, de que as laranjas realmente não estavam sendo vistas em toda a sua profundidade.
- É composta de gomos, que também são de ouro, são amarelos.
- Olhem só um “pé de pepitas de ouro”.
E apontava o telão, cheio de satisfação, porque ele também só tinha visto tudo isso pouco antes e se apresentava felicíssimo com um universo que trazia tais coisas a nós.
- Nas minas de “pepitas de laranja”, nas plantações, as pessoas podem extrair caminhões e caminhões desse ouro: colocam-nos em cestos.
- E há plantações de “pepitas de ouro”.
- Espremendo-as e tomando assim, ou batendo e tomando desse outro jeito pode-se beber esse ouro líquido.
- Caminhões e caminhões dessas pepitas são produzidas todos os anos e postas sob a forma de suco na mesa das pessoas, que nem valorizam.
- E é ouro que se pode beber, ele alimenta.
A plateia estava cada vez mais embevecida, uns apoiavam-se no queixo, outros choravam, outros riam e uns estavam extremamente pensativos, mais alguns conversavam, uns saíram apressados para ir comprar “pepitas de ouro”.
- Já vem num copinho próprio, redondinho, que você pode descascar ou partir em metades e espremer. Pode espremer em máquinas próprias, chamadas justamente “espremedoras de laranja”. Vejam só, máquinas de espremer ouro.
Alguns da plateia choravam desbragadamente.
- Por vezes as “pepitas de ouro” são transformadas em joias.
- Eu mesmo não tinha visto. Foi uma epifania. Bem que Cristo disse de outro modo que as coisas mais importantes estão à vista (“quem tem olhos de ver que veja”).
A plateia ao fim da palestra levantou-se toda e aplaudiu de pé demoradamente. Ao término dos aplausos o palestrante anunciou a fala da semana seguinte, sobre a Causa Metafórica da Queda, a Maçã.

A Parentada que Veio nos Visitar (da série Tudo Conto)


                               Minha mulher é chegada nisso de assombração, de receber os espíritos. Que maluquice! Eu não falava nada. Tá maluco? Eu é que teria de conviver com ela buzinando nos meus ouvidos dia após dia, mês após mês. Tá doido? Nunquinha mesmo. Fingia aceitar, fingia até acreditar. Ela continuava com as demências dela e eu continuava a ir ao bar beber com a rapaziada. Rir dela, contar, pra quê? Mais ou menos todo mundo passava pela mesma situação, menos o Aderaldo, que acreditava nessa porcaria.
                               Um dia foram uns parentes nos visitar, irmã e prima da minha mulher com os respectivos maridos. Tiraram férias juntas e vieram todos. Até que era rapaziada boa, saíamos pro bar do Zezão e ficávamos bebendo lá e contando lorota toda tarde. Eles também fingiam que acreditavam. Ou acreditavam mesmo. Olhei o Namir explicar que era assim e assado, o Jorge olhava de banda, eu concordava, é isso mesmo.
                               As três mulheres conspiravam em casa.
                               Já li que tem um diagrama chinês que significa “mulher”, mas se juntar três deles significa “fofoca”, coisa assim, quero buscar na Internet, mas fazer como, por onde começar? Se eu achasse aquele livro de novo, seria bom, ia mostrar pra rapaziada, eles concordam, é a pura verdade mesmo.
                               As três conversavam.
                                Montaram tudo e foram aos poucos contando respectivamente para cada um de nós, até que ficou acertado fazer uma “sessão espírita”, com aquela boiolagem de dar as mãos, é ridículo mesmo esse negócio de pegar em mão de homem, chega a dar ziquizira, incomoda, sei lá, é uma coisa ruim. Pegar em mão de mulher é natural, mas em mão de homem é ruim. Já perguntei pra mais de 50, ninguém gosta.
                               Ficamos lá, aquela palhaçada, as luzes apagadas, as mãos dadas um homem uma mulher, a rezação, “vem, vem”, fulano e beltrano. Aí “incorporava” e uma das mulheres começava a falar esquisito, eu por dentro rindo, que dementes. “É você, fulano?” E a voz cavernosa respondia isso e aquilo. É lógico, sempre sabemos uma coisa ou outra que nosso inconsciente pega no ar, os demais desconhecem e das muitas coisas que se diz uma ou outra, só por destoar, já parece coisa do outro mundo. Se em nossos tempos esclarecidos é assim, quanto mais lá para trás, de onde vêm as lendas. Os cientistas bem que poderiam explicar, se quisessem perder tempo com isso. Acho até que já explicaram, li por aí em livros e revistas. Se eles se dedicassem desmascarariam tudo isso, eu pensava. Mas, também, para onde iria a inofensiva diversão do povo?
                               De forma que a coisa caminha nos desvãos das permissões.
                               Eu ali raciocinando assim, enquanto em volta ia o arranjo, até que, juro por Deus, apareceu mesmo uma sombra, uma luz tremeluzente, um fantasma, se você quiser chamar assim, não tenho explicação, bem ali na minha frente. E não era só eu que tava vendo, não, era todo mundo. Depois apareceu mais um tio da Magda, meu avô Benedito, uma vizinha que tinha batido as botas, foi aparecendo um depois do outro. Como explicar algo assim? Estou pasmado até hoje. É claro que hoje em dia eu acredito. Como não acreditar? A gente não fala para ninguém, não senhor, ficamos de bico fechado.
                               Até porque essa parentada que veio nos visitar, mais de trinta (fora os outros que foram embora com a prima e a irmã), ainda está lá em casa. Abre as gavetas, mexe na geladeira, faz buracos no quintal, virou uma merda só, vou te dizer, um cocô de vida. Eles dormem pendurados no teto, encostados nas paredes. Se vem alguém visitar não vê nada e as crianças perguntam pelos barulhos que ouvem. A Magda e eu disfarçamos. Ela foi procurar o padre, mas ele não quer vir exorcizar, diz que é complicado, tá no filme, parece que é mesmo, além do que exorcismo é só quando há possessão e neste caso não há, eles não incorporam em ninguém, pelo menos essa delicadeza. Temos uns pega-pra-capar tremendos com eles, verdadeiros bate-bocas. O pessoal de fora pensa que a Magda e eu estamos brigando, não é nada disso. Ela chegou até a ir a um terreiro, veio uma mãe de santo, mas foi inútil, eles não vão embora, tá uma titica.
                               Já trouxe água benta que catei na Igreja de Santo Antônio, esparramei na casa, mas deu em nada, a parentada só ri. Droga, droga, droga. Parente quando encarna é uma porcaria. A trabalheira que dá para consertar as coisas não tá no gibi. Já saímos de férias seis anos seguidos para os lugares mais estranhos, mas eles vão junto.
                               Tô te falando, cara, não chame os parentes.
                               

A Morte Oferece Passagem (da série Tudo Conto)



Dacko Revin está para morrer.
A Morte (é mulher) aparece diante da porta da casa dele num subúrbio dos EUA. É bem apessoada, usa blazer preto marca-de-giz combinando com a calça também do mesmo tecido. Na lapela, discreta foice de ouro com a lâmina tendo de envergadura metade do comprimento do cabo.  Os cabelos estão presos por uma piranha. Leva uma maleta com 5 x 15 x 45 cm, encapada em couro preto, tudo em preto.
Bate, a esposa de Dacko atende.
- Sim.
- Preciso falar com Revin.
Ela não estranha nada, deixa-a entrar como se íntima fosse. Naturalmente, ninguém viu A Morte antes do momento da morte, mas todos foram instruídos a esperá-la, de modo que ninguém a encara mesmo como inteiramente desconhecida. A Morte vai subindo a escadaria, como se conhecesse a casa, e conhece mesmo.
Dacko toma um susto.
- Quem é você? Mesmo sabendo, ele pergunta, como se perguntar afastasse a realidade.
Abrindo sem cerimônia a maletinha junto do criado mudo, ela vai tirando uma seringa, empurrando o líquido como fazem as enfermeiras, fazendo soltar um pouco dele e dando um piparote no conjunto.
- A Morte, claro.
- Como, A Morte, você está de gozação?
- Não, de maneira nenhuma.
- Mas eu ainda posso viver mais, pelo menos uns seis meses, um ano, com sorte até dois.
- De fato, poderia, uns cinco anos, mas acho que não, decidimos que você está “pela hora da morte”, está incomodando sua esposa e filhos, seus vizinhos, seus pais, seus irmãos.
- Não, não, não, pelo amor de Deus.
- É justamente o amor de Deus que me move. Busco o perdão dele.
- Pelo menos existe vida após a morte?
- Como vou saber?
- Mas você existe há muitos, muitos anos!
- E daí, porque as sequóias vivem milhares de anos há vida após a morte? Porque os corais vivem 20 mil anos há vida após a morte? Vida após a morte é de quem permanece vivo. Que tipo de lógica é essa?
- E Deus, você viu Deus?
- Não, só os eleitos são absorvidos. Eu mato 50 milhões por ano.
- Certo, mas a mando dele.
- Pouco importa, ele não quer saber de assassinos.
- Você acha que aquele cachorrinho que eu adorava e mandei matar injetando overdose de barbitúrico conta?
A Morte olha-o de banda, com cumplicidade, e pisca. Como ela é branquérrima fica parecendo deboche.
- Não brinca!
- Nunca brinco. Posso contar piadas que são de morrer de rir, mas nunca estou brincando.
- E Pol Pot, que matou ou mandou matar três milhões. E Hitler? E Napoleão? E Mao? E Stalin?
- Pol Pot vai ter de reencarnar três milhões de vezes, o sacana, só pra dar trabalho.
- Cruzes.
- E vamos parar de desviar minha atenção. Estenda o braço.
- Não, não, não, pelo amor de Jesus Cristo.
- Você é judeu.
- Certo, mas ele também era, um compatriota.
Como ele demora em estender o braço, pelo contrário, procura encolhê-lo, A Morte o puxa com certa rispidez.
- Não precisa ser rude.
- Você tem ideia de quantos ainda tenho de matar hoje?
- Tenha consideração.
- Você teve?
 - Mas o Spirite estava sofrendo.
- O objetivo de vocês deve ser lutar pela vida, não facilitar a morte: fazer pesquisas, desenvolver, lutar até o fim, porque isso proporciona novos conhecimentos para a geração seguinte. Não sei qual interesse Deus tem numa espécie porqueira como a de vocês, mas isso é questão dele. No meu caso já estou quase cumprindo minha cota, outro assassino assumirá em breve.
A Morte aplica a injeção, Dacko começa a estrebuchar, a esposa corre.
- Querido, querido...
- Meu amor, não deixa ela me levar.
Ela, que nada vê, se desespera.
- Quem?, querido, não há ninguém aqui.
Revin dá os últimos suspiros.

A Firma de Mudança (da série Tudo Conto)


                        Maria decidiu certo dia mudar de vida.
                        Escolheu uma cidade bem distante e foi.
Mas não foi assim como quem vai às goiabas, de qualquer jeito, sem preparação. Pelo contrário, ela contratou uma firma, a firma de mudança Nova Vida.
Houve uma entrevista.
- O que a senhora vai querer ser?
- Prefeita custa caro?
- Custa. Mais de um milhão. E é preciso encontrar uma prefeita que deseje abandonar a vida dela, com ou sem marido e filhos, que é preciso também convencer. Custa caro e é trabalhoso.
- O que você tem por 300 mil?
- Temos muitos advogados, gente que pensou que ia ganhar os burros do dinheiro e virou gandula de porta de cadeia, encarregados de pegar as bolas fora. Economistas que pensavam ir dirigir os governos e as multidões “vão pra lá, vem pra cá”, e a construir empresas; muitos, muitos. Administradores mirins que achavam ser gigantes da economia que iriam organizar isso e aquilo, um horror! Engenheiros desempregados, uma tonelada. Dentistas fracassados, médicos derrotados, funcionários públicos insatisfeitos a gente já perdeu a conta.
- Não tão baixo assim.
- A senhora sabe que terá de compensar, né, se a sua nova vida recebia salário maior.
- Como assim?
- Se a pessoa ganha 100 mil por ano e a senhora ganha 80 mil evidentemente ela vai receber 20 mil a menos e isso a senhora terá de pagar anualmente. Aconselhamos poupar. A firma é inflexível nisso.
- É compreensível.
- E há nossos honorários, 10 % tanto da senhora quando da outra parte, há muitas preparações a fazer, adequações, acompanhamento por psicólogos, uma quantidade impressionante de tarefas.
- Vamos precisar eu e ela nos conhecer e assinar os papéis, eu li.
- Com certeza a senhora leu os prospectos e sabe que não é possível mudar para papel de homem (nem vice-versa): a senhora assinará um contrato ao entrar na nova vida.
- Sim, compreendo. Nem quero isso.
- E, depois, se a senhora tem marido e a outra tem também, é preciso que os maridos (e os filhos) aceitem.
- Estou ciente.
- É necessário que os dois grupos se conheçam.
- E se a senhora desejar voltar seria o caso de fazer toda uma negociação contrária e começar tudo de novo, com novos gastos. A outra pode não querer, entende?
- Não tem retorno.
- A senhora leu a caderneta, o livrinho?
- Li, sim, detalhadamente.
- Então, por favor, assine aqui.

A Festa do Milhão (da série Tudo Conto)



Os ricos combinaram de dar festa sempre que qualquer pessoa atingisse seu primeiro milhão em dólares. O pretendente, é lógico, se preparava e alugava um lugar muito bom. O jantar, em si, era com grande rigor restrito a 500 pessoas, milionários homens e milionárias mulheres, e podia ser gasto o equivalente a 100 dólares para cada um, portanto, 50 mil no total, 5 % da riqueza já contando os familiares. Não era restrito a faixa de riqueza, podia vir qualquer um, mesmo os muitos ricos ou de muito longe, porque era tirado por sorteio.
O novo-rico se esmerava.
Contratava uma banda, caprichava nos canapés (porque de rico não são salgadinhos, são canapés), firmava a elegância e lá ia, ele e a família, se família houvesse. Os contatos eram importantes. Como dizem, não é o que você tem, mas a sua cadernetinha. Políticos só eram convidados se fizessem parte do clube e geralmente faziam, porque logo, logo tratavam de tirar dinheiro dos outros.
O novo-rico (ou a novo-rica) entrava todo emproado, pisando duro, mal sabendo tratar-se de uma iniciação, pois o mais rico da geo-história, Rockefeller, passou os 300 bilhões de dólares de hoje, quer dizer, 300.000 daquele primeiro milhão. Era um “cala a boca” elegante e pago pelo otário. As pessoas riam à boca miúda. E como a festa só era dada ao se atingir o primeiro milhão e da primeira vez, ninguém ficava sabendo, assim como também não vazava para a imprensa, pois ela nunca era convidada, como no Grupo Bilderberg.
Assim, os ricos tinham um punhado de festas anuais gratuitamente e ficavam conhecendo novos compradores, além de poderem conversar uns com os outros. As mulheres tricotavam as vidas, as crianças brincavam em terreno saudável e tudo por conta do otário da vez. Nas vezes seguintes, se fosse convidado, ele estaria junto dos que riam.
Não é por nada que rico ri à toa, ri à toda, é que o mundo é realmente engraçado.

A Convenção dos Sinais (da série Tudo Conto)


Entregue os crachás, os convencionais foram procurar cadeira na ampla sala das convenções, repletas de sinais para quem quisesse ver.
Exclamação foi empurrando quem estivesse na frente.
- Sai! Vai! Afasta!
Falava sempre com muita firmeza e ia rompendo, não importando quem fosse. Ia acotovelando homens e mulheres, até os pequeninos, ia vazando.
- Aonde você vai? O que está fazendo? Quem pensa que é?
Interrogação não estava nada de bom humor. Tinha acabado de vir de um interrogatório policial e manifestava o desagrado a quem pudesse.
Exclamação, tinha finalmente acabado de sentar à esquerda de Mais e de Multiplicação, que conversavam animadamente, procurando sempre acrescentar.
Disse, truculento:
- Vírgula, vê se baixa o cabeção aí! Se você se escondesse mais ajudaria a vida de todos, tá bom!
Pior que ele tinha sentado à direita de Travessão, gordo e espaçoso.
- Hei, não empurra, sua besta.
Do outro lado estavam dois colchetes, aparentemente guardando lugar entre eles para alguém. Exclamação fez que ia sentar entre eles, mudando de cadeira, esperando livrar-se de Travessão, mas os dois foram taxativos.
- Aqui, não. Vai chegar gente.
Olhou pra trás, mas tinha o Ponto Final, que não dava papo pra ninguém. Pequeno, mas enjoado, melhor não mexer com ele. Junto de Vírgula, na frente, estava Reticências. É ruim, hem, pensou, esse cara não consegue dizer coisa com coisa, sempre em dúvida, nunca consegue falar algo direto, é o contrário de mim. Do lado direito de Travessão estava Travessinha, como as pessoas chamavam Hífen. Os dois só andavam juntos, o Gordo e o Magro, os boiolas.
- Pôrra, tá difícil, hoje! – falou entredentes Exclamação.
Duas cadeiras para trás ele viu Ponto e Vírgula, camaradinha cem por cento, sempre abria espaço para alguém, mas ele estava imprensado entre as gêmeas Aspas Abertas e Aspas Fechadas, junto dos gêmeos Apóstrofos.
- Que merda, que merda! Tô entalado! Bosta, ô troço entupido, senhor!
De fato, toda uma seção da sala estava ocupada pelos Sinais de Trânsito, parentada difícil e orgulhosa, só porque era dona de veículos.
- Não sei por que eu vim a essa merda!
Os sinais aritméticos e matemáticos em geral eram outros que só andavam juntos. Radiciação e Exponenciação eram os mais-mais, os gostosinhos da parada, mas os outros não ficavam para trás, porque lidavam principalmente com dinheiro e essa gente cheia de grana é de uma babaquice a toda prova.
Dois Pontos estava “guardando lugar para gente importante”, disse ele.
- Todo esse lado direito aqui tem mais significado – disse ele.
- E eu com isso?
Interrogação partilhou as dores de Exclamação.
- É mesmo, foda-se você! Acho que ele não sabe que as pessoas gozam dele, “dois pontos, o de baixo primeiro pro de cima não cair”!
- Tá separado por família?
- Sim e não – respondeu Ponto e Vírgula. Por exemplo, ali você pode ver Infinito, está tão gordo que ocupou duas cadeiras junto da gente. PI ficou famoso, virou estrela, está sentado lá em cima. Igual quer agradar todo mundo e ninguém o suporta, nem a própria família, os Matemáticos.
- Tá vendo lá?
- Tou!
- Lá mais para cima?
- Tou, caramba, já disse que tou!
- Viu o Chaves?
- Até os venezuelanos vieram!
- Caramba, os gregos também vieram? Conseguiram convencer todo mundo, né? Que coisa espantosa, né?
Nisso os sinais musicais começaram a tocar e a cantar.
- Essa pôrra é pra calar a gente!
- Não é mesmo?
Mas em vez de silenciar, aí que começou o burburinho, parecia até reunião estudantil, ninguém conseguia se entender.

A Candidatura (da série Tudo Conto)


                              Padre Zezinho lançou a candidatura dele. De início o pessoal riu: "Padre Zezinho tá ficando doido, zureta de tudo". À boca pequena, claro, porque ninguém teria tanta audácia de falar diretamente, até porque padre Zezinho era respeitadíssimo na comunidade. Padre Zezinho não arredava pé: queria porque queria se candidatar. "Por que não?", perguntava, fazendo cara de inocente.
                               O bispo o chamou lá.
                              "Ô, José, que estória é essa? Eu te conheço há trinta e tantos anos e agora você vem com essa? Que é que deu em você?"
                               Padre Zezinho explicou. E a democracia?
                              O bispo achou que com o tempo padre Zezinho entraria nos eixos e desistiria da idéia, e deixou por isso mesmo. Enganou-se, porque padre Zezinho estava cada vez mais firme. De brincadeira em brincadeira a idéia foi crescendo, a paróquia dele aderiu, a princípio meio ressabiada, mas depois com cada vez mais audácia e o movimento foi passando de paróquia a paróquia, até que a cidade (não diremos o nome, mas todo mundo sabe qual é) quase toda aderiu. "Zezinho, Zezinho, Zezinho". Ave, credo, que gente!
                               O bispo veio visitar.
                               Padre Zezinho explicou de novo. E a democracia?
                              "Que democracia? Endoidou? Na Igreja não tem isso de democracia, não. Não é sistema presidencial nem republicano. O Papa é o Vigário de Cristo, o vice-rei do Trono de Cristo, o vizir, o primeiro-ministro do Rei dos Reis. Na ausência de Cristo, para todos os efeitos ele é rei, não tem isso de democracia, não senhor, a história é outra."
                               Padre Zezinho já tinha passado dos 60 e fincava pé.
                              "Mas não teve padre que foi eleito?"
                               "É, teve, mas foi uma vez ou outra, muito raramente, e a forma foi diferente, você não aprendeu nada em Roma?"
                               "Sim, eu sei, mas acho que já está na hora de mudar."
                               E continuou firme.
                               O bispo ameaçou excomungar os que o acompanhavam nessa idéia maluca e o movimento foi esvaziando. Os aderentes festivos foram se afastando do padre Zezinho, que agora estava cada vez mais sozinho, rezando missas para poucos. Os políticos que tinham ido prestar solidariedade no momento em que a imprensa do mundo inteiro tinha se interessado também foram embora. Padre Zezinho agora estava na oposição, e na oposição com ele estavam poucos e esses poucos foram ficando cada vez em menor número, número que foi diminuindo até se poder contar nos dedos de uma só mão.
                               Padre Zezinho não desistia.
                               Ô, que cara mais teimoso, gente!
                               Padre Zezinho não desistia.
                               O cardeal do Rio de Janeiro virou uma arara. A imprensa continuava a tocar fogo, principalmente a ligada aos evangélicos, que desejavam destruir a Igreja Católica. O pessoal do deixa-disso aproveitou para sensibilizar padre Zezinho.
                              "Padre, o senhor está provocando cisma na Igreja."
                               Isso padre Zezinho não queria, porque era totalmente fiel à Santa Madre Igreja, que amava de coração desde a infância.
                               O bispo voltou com um ultimato.
                               "Ou você para ou será destituído de suas funções. É isso que você quer?"
                               Não era isso que padre Zezinho queria.
                               Padre Zezinho queria que sua candidatura a Papa fosse levada a sério e que houvesse uma votação universal dos 1,3 bilhão de católicos, vê se pode! Finalmente padre Zezinho desistiu, não sem antes causar grande mal, porque por toda parte as pessoas começaram a se perguntar se num mundo democrático não seria mesmo conveniente eleger o Papa por votação direta. Complicado, caro, mas útil, afirmaram os teóricos da sedição, da sublevação, da revolta. Os que se interessavam pelo rompimento do poder cristão jogaram gasolina na fogueira e por toda parte lavrou incêndio de grandes proporções.
                               Padre Zezinho acreditava na democracia.
                               Ah, se a democracia fosse aquilo que padre Zezinho acreditava! Mas não era, nem de longe.