Dacko Revin está para morrer.
A Morte (é mulher) aparece diante da
porta da casa dele num subúrbio dos EUA. É bem apessoada, usa blazer preto
marca-de-giz combinando com a calça também do mesmo tecido. Na lapela, discreta
foice de ouro com a lâmina tendo de envergadura metade do comprimento do
cabo. Os cabelos estão presos por uma
piranha. Leva uma maleta com 5 x 15 x 45 cm, encapada em couro preto, tudo em
preto.
Bate, a esposa de Dacko atende.
- Sim.
- Preciso falar com Revin.
Ela não estranha nada, deixa-a
entrar como se íntima fosse. Naturalmente, ninguém viu A Morte antes do momento
da morte, mas todos foram instruídos a esperá-la, de modo que ninguém a encara
mesmo como inteiramente desconhecida. A Morte vai subindo a escadaria, como se
conhecesse a casa, e conhece mesmo.
Dacko toma um susto.
- Quem é você? Mesmo sabendo, ele
pergunta, como se perguntar afastasse a realidade.
Abrindo sem cerimônia a maletinha
junto do criado mudo, ela vai tirando uma seringa, empurrando o líquido como
fazem as enfermeiras, fazendo soltar um pouco dele e dando um piparote no
conjunto.
- A Morte, claro.
- Como, A Morte, você está de
gozação?
- Não, de maneira nenhuma.
- Mas eu ainda posso viver mais,
pelo menos uns seis meses, um ano, com sorte até dois.
- De fato, poderia, uns cinco anos,
mas acho que não, decidimos que você está “pela hora da morte”, está
incomodando sua esposa e filhos, seus vizinhos, seus pais, seus irmãos.
- Não, não, não, pelo amor de Deus.
- É justamente o amor de Deus que me
move. Busco o perdão dele.
- Pelo menos existe vida após a
morte?
- Como vou saber?
- Mas você existe há muitos, muitos
anos!
- E daí, porque as sequóias vivem
milhares de anos há vida após a morte? Porque os corais vivem 20 mil anos há
vida após a morte? Vida após a morte é de quem permanece vivo. Que tipo de
lógica é essa?
- E Deus, você viu Deus?
- Não, só os eleitos são absorvidos.
Eu mato 50 milhões por ano.
- Certo, mas a mando dele.
- Pouco importa, ele não quer saber
de assassinos.
- Você acha que aquele cachorrinho
que eu adorava e mandei matar injetando overdose de barbitúrico conta?
A Morte olha-o de banda, com
cumplicidade, e pisca. Como ela é branquérrima fica parecendo deboche.
- Não brinca!
- Nunca brinco. Posso contar piadas
que são de morrer de rir, mas nunca estou brincando.
- E Pol Pot, que matou ou mandou
matar três milhões. E Hitler? E Napoleão? E Mao? E Stalin?
- Pol Pot vai ter de reencarnar três
milhões de vezes, o sacana, só pra dar trabalho.
- Cruzes.
- E vamos parar de desviar minha
atenção. Estenda o braço.
- Não, não, não, pelo amor de Jesus
Cristo.
- Você é judeu.
- Certo, mas ele também era, um
compatriota.
Como ele demora em estender o braço,
pelo contrário, procura encolhê-lo, A Morte o puxa com certa rispidez.
- Não precisa ser rude.
- Você tem ideia de quantos ainda
tenho de matar hoje?
- Tenha consideração.
- Você teve?
- Mas o Spirite estava sofrendo.
- O objetivo de vocês deve ser lutar
pela vida, não facilitar a morte: fazer pesquisas, desenvolver, lutar até o
fim, porque isso proporciona novos conhecimentos para a geração seguinte. Não
sei qual interesse Deus tem numa espécie porqueira como a de vocês, mas isso é
questão dele. No meu caso já estou quase cumprindo minha cota, outro assassino
assumirá em breve.
A Morte aplica a injeção, Dacko
começa a estrebuchar, a esposa corre.
- Querido, querido...
- Meu amor, não deixa ela me levar.
Ela, que nada vê, se desespera.
- Quem?, querido, não há ninguém
aqui.
Revin dá os últimos suspiros.
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