Parla (da série Conto Ainda Mais)

Parla

 

Dizem que quando Michelangelo di Lodovico Buonarroti Simoni (Caprese, 6 de Março de 1475 — Roma, 18 de Fevereiro de 1564, Wiki) terminou a escultura David, ficou tão impressionado com a precisão de sua arte que disse em italiano “parla” (fala!). Certamente é estória, não porque Miguel-Anjo não fosse preciso em suas obras, mas porque ele não seria imodesto assim, nem sozinho, quanto mais mal acompanhado.

Na realidade ele ficou olhando um tempão a expressividade dessa figura histórico-bíblica, o rei Davi.

O REI DAVID

Ficou ali olhando e pode ter dito, mas bem baixinho (o que depois terá contado a algum idiota que espalhou). E ensimesmou na observação, não de sua obra, mas de uma das mais extraordinárias figuras da geo-história, ainda que muito multiplicada pelo tempo e a falta de notícias que faz avultar todo personagem.

- Oi.

Miguel deu um salto, de tanto susto.

- Quem falou?

- Eu.

Outro salto, dessa vez em volta, procurando a pessoa. Ele saiu correndo ao redor das colunas, procurando o brincalhão.

- Pode se mostrar, seu menino idiota.

- Como assim?

- Você fica com isso de ventríloquo e acha que vai me espantar. Menininho boboca, vou te dar uns tabefes.

- Sou eu.

Até que Miguel olhou e não acreditou, era a estátua.

- Você?

- Sim, eu, eu mesmo, você não disse “fala”? Falei.

- Como é possível?

- Sei lá, não dizem que “a Deus tudo é possível”? Talvez ele queira te dar uma lição ou tenha mandado um recado.

- Lição? A mim? E porque quereria? Que recado?

- São insondáveis os planos de Deus. Talvez ele tenha me enviado com uma mensagem importante.

Nisso Miguel reparou direitinho que no vão da porta tinha mesmo um espia escondido.

- Filho de uma égua, era você, seu merdinha.

E correu para ele para esbofeteá-lo.

Quando já tinham saído da sala, a estátua falou:

- Miguel, Miguel, e o recado de Deus? Só posso ficar cinco minutos, volte.

Serra, terça-feira, 24 de julho de 2012.

José Augusto Gava.