Wednesday, June 12, 2013

Balas Perdidas (da série Conto Tudo Novo)

                        
                        Eram tantas, mas tantas no Brasil (não sei se no estrangeiro é assim), que elas decidiram fundar associação do tipo AA Alcoólicos Anônimos, não apenas para se apoiarem umas às outras localmente, ali mesmo, ao vivo, como principalmente para procurarem ajuda externa em sua perdição.
Então as Balas Perdidas criaram a AABP Associação Anônima das Balas Perdidas, mirando principalmente obstruir o estigma de “Perdidas”.

PERDIDA NO DICIONÁRIO HOUAISS ELETRÔNICO


n substantivo feminino
mulher prostituída; meretriz


Isso é o que doía mais, ser desconsiderada, quando tudo que elas tinham querido era prestar serviço social. Se não puderam encontrar o corpo de um bandido, assim proporcionando prazer inenarrável aos policiais ou, ao contrário, mas menos satisfatoriamente, até com desprezo, pegar um policial tenrinho, que culpa podia ter a Bala Perdida? Por vezes, desgraçadamente, pegavam um passante que nada tinha a ver com a coisa, mas mesmo assim prestavam serviço, pois a pessoa aparecia no noticiário.
Só quando, de tudo, não encontravam ninguém é que ficavam totalmente perdidas, às vezes na sarjeta: foi para isso que foram criadas? Não foi para morder a carne? Elas foram feitas para ferir, para matar, não para serem PERDIDAS, vamos e venhamos! E se um dia fosse como na China em que as armas eram proibidas e até os policiais tinham de dar conta das balas disparadas e em que situação... Impensável.
Como é tradicional, cada Bala Perdida tinha de se levantar e se apresentar, depois discorrendo sobre seu problema de adaptação às pessoas e aos ambientes.
- Oi, gente.
TODOS (felizes, entusiasmados) – Oi.
- Sou a 2.827.
TODOS (vibrando) – Boa noite, 2.827.
- Sou uma Bala Perdida e fui perdida no Rio de Janeiro, numa rua em que me vi abandonada, sem minha família Ponto Quarenta e todos da Ronda.
TODOS – Prazer, 2.827.
ALGUMA ISOLADA – Gracinha, que dozinha que dá.
- Reconheço que não seria Perdida se tivessem tido mais cuidado comigo, por exemplo, se não disparassem à toa, por todo e qualquer motivo e até mesmo sem motivo.
TODOS – Compreendemos, 2.827.
- Hoje me aceito como Perdida, mas gostaria mais de estar com minha família.
TODOS – nós também, 2.827.
- Penso que se houvessem menos Balas de Rua haveria menos Balas Perdidas.
TODOS – Não tem jeito, 2.827.
DIREITORA (interferindo com certa rudeza) – você não está aqui para pensar, 2.827.
- Desculpe, direitora, minha insolência, se assim lhe parece, mas a questão é que papai e mamãe me deram educação, antes de eu me dar por Perdida, porisso me reservo o direito de pensar.
DIREITORA – não, senhora, aqui, não, aqui é só para descrever os problemas, não é para aprofundar nas causas.
2.827 (gritando) – o caramba que não é. Posso ser Perdida, mas não sou tola. Se não é para falar tudo, se não é para analisar as causas que me levaram a ser Perdida, o que estou fazendo aqui?
TODAS (indignadas) – é, o quê?
DIREITORA – quem trouxe essa mulher? Ela não sabe que no Brasil não nos aprofundamos nas causas?
Ninguém responde. Todas baixam a cabeça, menos 2.827, que a empina ainda mais.
DIREITORA – a senhora poderia se retirar?
2.827 – não vou, não, posso ser Perdida, mas não sou idiota, quero falar, quero meu direito constitucional de expressão.
DIREITORA – direito? Direito? Que direito?
2.827 – Direito, O Direito, a teoria geral do que é certo e errado sob a ótica da racionalidade, ancorada na Justiça Divina, que tentamos imitar.

DIREITORA – essa estudou, é perigosa. Segurança... SEGURANÇA.

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