Eram tantas, mas tantas no Brasil (não sei se no
estrangeiro é assim), que elas decidiram fundar associação do tipo AA
Alcoólicos Anônimos, não apenas para se apoiarem umas às outras localmente, ali
mesmo, ao vivo, como principalmente para procurarem ajuda externa em sua
perdição.
Então as Balas Perdidas criaram a AABP
Associação Anônima das Balas Perdidas, mirando principalmente obstruir o
estigma de “Perdidas”.
PERDIDA NO DICIONÁRIO HOUAISS ELETRÔNICO
n substantivo feminino
mulher prostituída; meretriz
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Isso é o que doía mais, ser desconsiderada,
quando tudo que elas tinham querido era prestar serviço social. Se não puderam
encontrar o corpo de um bandido, assim proporcionando prazer inenarrável aos
policiais ou, ao contrário, mas menos satisfatoriamente, até com desprezo,
pegar um policial tenrinho, que culpa podia ter a Bala Perdida? Por vezes,
desgraçadamente, pegavam um passante que nada tinha a ver com a coisa, mas
mesmo assim prestavam serviço, pois a pessoa aparecia no noticiário.
Só quando, de tudo, não encontravam ninguém
é que ficavam totalmente perdidas, às vezes na sarjeta: foi para isso que foram
criadas? Não foi para morder a carne? Elas foram feitas para ferir, para matar,
não para serem PERDIDAS, vamos e venhamos! E se um dia fosse como na China em
que as armas eram proibidas e até os policiais tinham de dar conta das balas
disparadas e em que situação... Impensável.
Como é tradicional, cada Bala Perdida tinha
de se levantar e se apresentar, depois discorrendo sobre seu problema de
adaptação às pessoas e aos ambientes.
- Oi, gente.
TODOS (felizes, entusiasmados) – Oi.
- Sou a 2.827.
TODOS (vibrando) – Boa noite, 2.827.
- Sou uma Bala Perdida e fui perdida no Rio
de Janeiro, numa rua em que me vi abandonada, sem minha família Ponto Quarenta
e todos da Ronda.
TODOS – Prazer, 2.827.
ALGUMA ISOLADA – Gracinha, que dozinha que
dá.
- Reconheço que não seria Perdida se
tivessem tido mais cuidado comigo, por exemplo, se não disparassem à toa, por
todo e qualquer motivo e até mesmo sem motivo.
TODOS – Compreendemos, 2.827.
- Hoje me aceito como Perdida, mas gostaria
mais de estar com minha família.
TODOS – nós também, 2.827.
- Penso que se houvessem menos Balas de Rua
haveria menos Balas Perdidas.
TODOS – Não tem jeito, 2.827.
DIREITORA (interferindo com certa rudeza) –
você não está aqui para pensar, 2.827.
- Desculpe, direitora, minha insolência, se
assim lhe parece, mas a questão é que papai e mamãe me deram educação, antes de
eu me dar por Perdida, porisso me reservo o direito de pensar.
DIREITORA – não, senhora, aqui, não, aqui é
só para descrever os problemas, não é para aprofundar nas causas.
2.827 (gritando) – o caramba que não é.
Posso ser Perdida, mas não sou tola. Se não é para falar tudo, se não é para
analisar as causas que me levaram a ser Perdida, o que
estou fazendo aqui?
TODAS (indignadas) – é, o quê?
DIREITORA – quem trouxe essa mulher? Ela
não sabe que no Brasil não nos aprofundamos nas causas?
Ninguém responde. Todas baixam a cabeça,
menos 2.827, que a empina ainda mais.
DIREITORA – a senhora poderia se retirar?
2.827 – não vou, não, posso ser Perdida,
mas não sou idiota, quero falar, quero meu direito constitucional de expressão.
DIREITORA – direito? Direito? Que direito?
2.827 – Direito, O Direito, a teoria geral
do que é certo e errado sob a ótica da racionalidade, ancorada na Justiça
Divina, que tentamos imitar.
DIREITORA – essa estudou, é perigosa.
Segurança... SEGURANÇA.
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