O doutor
Carlos era por um lado ferrenho defensor da eugenia porque, dizia, o contínuo
melhoramento da espécie levaria ao fim da necessidade dos remédios ou, pelo
menos, sua redução drástica a uma fração dos que são ofertados hoje, a 1 % ou a
0,1 % ou até menos (imediatamente as indústrias farmacêuticas lhe tiraram as
férias pagas no Caribe, as verbas de pesquisa, todas as facilidades em
restaurantes, começaram a fofocar no meio médico-bioquímico, foi um horror,
todos passaram a vê-lo como inimigo). Já não haveria necessidade de muletas e
aparelhos ortopédicos (as indústrias do setor juntaram-se às farmacêuticas),
nem de Cooper e corridas (as empresas de calçados e de tênis ficaram
horrorizadas), nem de regimes (aí foram os colegas endocrinologistas e
nutricionistas que entraram na parada, bem como as indústrias do light e do
diet) PORQUE o corpo só aproveitaria dos alimentos aquilo que fosse
estritamente necessário, descartando o resto todo.
O doutor
Carlos estava longe de ser racista, muito pelo contrário, era a favor de pegar
os melhores valores de cada raça, todas as vantagens, descartando ferozmente as
desvantagens, no processo fundindo esses melhores numa super-raça central
morena capaz de enfrentar o futuro plenamente.
Enfim,
doutor Carlos passou a ser detestado no meio médico-farmacêutico-industrial,
quer dizer, já não podia circular sem que cuspissem nele e coisa e tal, durante
um tempo foi preciso até contratar guarda-costas e usar colete à prova de balas
e facadas. Decerto houve aquela fez que a enfermeira escorregou e cortou o
braço dele com o bisturi, pedindo depois mil desculpas, é compreensível. Ou
daquela vez em que acidentalmente doutor Jonildo esbarrou nele e ele caiu na
escada por acaso recém-lavada, descendo seis lances a toda velocidade: duas
costelas quebradas, nariz entortado, isso é o de menos. E teve aquela outra em
que ele tomou uma dose pequena de veneno do pessoal da homeopatia, remédio por
acaso super-dosado. Ou então, quando teve gripe e lhe injetaram umas bolhas de
ar, descuido do aplicador, quase provocando embolia, não fosse ele ser
médico...
O acaso
faz coisa.
Lei de
Murphy.
Bem, rico
como era, o doutor Carlos era também a favor da eutanásia, a ideia de
proporcionar alívio aos que estão morrendo em processo terminal – ajuda
humanitária, claro, afinal era a vida dos outros. E só se a família
concordasse. Isso aliviaria o seguro-saúde, que tinha de pagar diárias
caríssimas apenas para manter os pacientes e prolongar suas vidas, sem falar
daqueles em coma, que diária de hospital não é mole. Se o doutor Carlos perdia
por um lado, ganhava por outro, os SS ficaram super-a-favor, doutor Carlos era
o máximo. Os hospitais não gostaram muito de o doutor Carlos estar tirando
dinheiro deles e ele sofreu mais alguns acidentes, coisa pouca. Teve a vez que
a rótula dele foi esmagada por um carro que o atropelou no pátio do hospital
(por sorte ele puxou a perna, pegou de raspão no joelho), teve aquela vez em
que o ladrão o espancou com uma barra de ferro sem felizmente levar nada, teve a
ocasião em que o armário pesadíssimo caiu sobre ele no quarto do plantão e mais
umas vezes, 10 ou 15, quem vai contar?
Tanto
trabalhou a questão que acabou vitorioso, passaram uma lei autorizando os
médicos, uma junta de pelo menos três, a injetar um coagulante que matava em
apenas cinco segundos. Mas eles não diziam “matar”, que seria rude, falavam em
“socorro administrado”.
Por último
doutor Carlos, que só dirigia a 60 km/h (o pessoal até reclamava: ô, meia-roda,
não sabe dirigir carro compra um carrinho de mão) foi jogado do precipício pelo
caminhão que vinha a 130 em sentido contrário, que azar.
Entrou em
coma, ficou um mês, não melhorava, conversaram com a família, receberam
autorização de doação de órgãos, foram socorrê-lo no mesmo hospital onde ele trabalhava.
Com muita dificuldade conseguiram 25 médicos dispostos a assinar o laudo de
morte cerebral.
Foram os
três médicos e três enfermeiras.
MÉDICO UM
– todos concordam?
TODOS
(eufóricos) – SIM.
MÉDICO UM
– gente, pelo menos disfarça; e se houver câmera?
TODOS –
tem não, tem não.
DOUTOR
MARCOS – gente, ei gente.
MÉDICO UM
– alguém quer falar alguma coisa?
Todos
balançam a cabeça negativamente.
DOUTOR
CARLOS (desesperado) – gente, me ouça, tô vivo.
DOUTOR
DOIS – os documentos tão em ordem, confere aí, Magda.
MAGDA –
super em ordem, já conferir 11 vezes.
DOUTOR
CARLOS – gente, não faz isso comigo, não finge que não está me ouvindo, sou eu,
doutor Carlos. Vou mexer os dedos para vocês verem que tô vivo (pensa que mexe,
mas na realidade não mexe nada).
DOUTOR
TRÊS – Jonildo, você vê algum sinal de vida?
DOUTOR
JONILDO – nada, nadica mesmo. E você, Emerson?
DOUTOR
ÉMERSON – necas de pitibiribas.
DOUTOR
CARLOS (pensando estar falando) – socorro, socorro.
DOUTOR
TRÊS – pode aplicar, Jussara.
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