- E aí, vai querer uma barbaridade?
- Quais você têm?
- Tanto tenho das mais leves, quanto
das mais pesadas.
- Quais?
- Bem, entre as invendáveis está
aquela barbaridade que os filhinhos de papai dos políticos de Brasília fizeram com
os índios, tocando fogo neles, terrível, grande barbaridade, não diminui com o
tempo, não dá para esconder: por mais tempo que passe e por mais que a gente
pinte para ver se melhora, continua impossível passar adiante. Já aquela
barbaridade do gás em Bopal, na Índia, não foi tão difícil, já quase
esqueceram. E o gás Sarin espalhado no metrô de Tóquio aqui ninguém ouviu
falar, foi fácil vender essa barbaridade. Em compensação, se tivessem querido
vender lá não teriam conseguido, de modo que às vezes a gente troca.
- Você vende mais para pessoas
desinformadas, né?
- Ah, é. As pessoas cultas tem mais
tempo e interesse em lembrar, difícil vender pra elas. Você sabe, os
ignorantes, que não dão importância ao passado, por vezes aceitam as
barbaridades numa boa, assim, sem mais aquela.
- Dá um exemplo.
- Sabe aquela barbaridade dos
Gulags?
- Sei, URSS, Sibéria, milhões de
mortos, a gente nem sabia.
- Pois então, como foi barbaridade
que aconteceu “lá longe”, consegui mascarar e passei pra frente, já ficou
menor, foi fácil empurrar pro Esquecimento, ele comprou numa boa. As pessoas
acham que nunca vai acontecer perto da gente.
- Não diga! O Esquecimento?
- Foi. Se caiu para o Esquecimento
pode cair para qualquer um. Agora mesmo estou tentando empurrar para ele aquela
barbaridade do Holocausto. E a Lei Maria da Penha, trazendo tanto alívio às
mulheres, vai acabar levando a barbaridade cometida contra as mulheres para o
Esquecimento também. Ele absorve muita coisa.
- Perda de Memória também tá nessa,
é primo-irmão do Esquecimento, eles trabalham junto do Caos.
- Ih, rapaz, já passei muita coisa
pra ele. Infelizmente o Historiador fica patrulhando, mas poucos hoje em dia
lêem os relatórios dele. Quem lê não aceita barbaridade de jeito nenhum, nem
embrulhando bem, nem enrolando.
- Vá à periferia, lá eles acreditam
em qualquer coisa, eles vêem televisão, ouvem rádio, não se lembram de quase
nada, a consciência deles é a mais superficial possível, não lêem livros, não
sabem nada de geo-história.
- É mesmo, falou tudo. Vou picar a
mula pra lá.
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