Thursday, June 27, 2013

A Beleza Não Põe Mesa (da série de contos Se Precisar Conto Outra Vez)


A Beleza era empregada na casa do doutor Mário.
Era tudo de bom.
Educadíssima, finíssima, limpíssima, de uma nobreza a toda prova.
Era negra.
Fazia todos os trabalhos da casa, ganhava super-bem frente a essas porcarias que se paga por aí e por ser quem era tinha várias regalias. Era mais do que da família, o povo todo a amava, tanto o doutor quando dona Selma, os filhos, os vizinhos, os entregadores, todos quanto a conheciam, até as crianças dos vizinhos quando as crianças as traziam, porque ela era puro desvelo.
Contudo, a Beleza não punha mesa.
Não tinha nada que a fizesse colocar os pratos e os alimentos na mesa, dona Selma é que tinha de fazê-lo, junto com as crianças ou os visitantes.
Não tinha como fazê-la pôr mesa.
O doutor Mário argumentava:
- Mas, Beleza, e se você fosse minha patroa, eu não teria de colocar a mesa? Ou se qualquer um fosse seu empregado?
Não adiantava.
Tinha havido (ainda há, em alguma medida) escravidão no Brasil, um dos últimos países a aboli-la (na Arábia Saudita houve servidão até a década dos 1960), parecia que ela estava se sujeitando, sei lá, ela não queria lembrar nem de longe do estado servil, de um ser humano submetendo-se a outro, é vergonhoso mesmo.
Nada a convencia.
Pessoa após pessoa achava que podia vencê-la com tal ou qual argumento, tudo baldado.
Que importava?
Se a Beleza não punha mesa, ela fazia muitas coisas boas, maravilhosas, de longe muito melhores que as de outros.
E todo mundo raciocinava: que importa se a Beleza não põe mesa? Ela tem inúmeras utilidades. Que seria de nós sem a Beleza? A Beleza nos alegra, nos traz felicidade, nos ilumina.
E cada qual procurava fazer o que a Beleza não fazia.

Viagens Virtuais (da série Conto Tudo Novo)


- Nico, olha o caminhão, caramba!
- Puta merda, tava distraído.
- Cara, cê tem que prestar mais atenção. Esse cara tá zureta, Tina.
- Falei pra passar o volante pra mim.
Geraldo meteu o bedelho.
- Jonas, você verificou se estava tudo bem?
- Claro, com o carro tudo bem, tudo azeitadinho.
- Tem certeza?
- Tenho.
- Então, como é que viemos parar em Punta Del Leste? Não estávamos indo para o Espírito Santo?
- Que é isso, Geraldo, como que seria Punta Del Leste?
- Olha pela janela.
Jonas olhou. Realmente.
- Rapaz, que erro de cálculo.
- Ô, Nico, você viu isso?
- Vi, estou bestificado.
Maria se jogou no papo.
- Fui eu, gente. Mexi nos controles.
Reginaldo ficou puto.
- Porra, Maria, você sempre faz isso. Tá no inverno, caramba, a gente não ia conhecer o Espírito Santo? Agora aqui só tem neve.
- Podemos mudar.
- Esse muda pra lá, muda pra cá acaba comigo: planejei A, quero ir para A, sou um homem de compromissos – disse Zeca.
- Ih, Zeca, não se chateia, pensei que ia agradar a vocês.
- Olha, Maria, por mais boa vontade que você tenha, Zeca tá certo, temos que ter um norte (e aqui, literalmente, seria PARA O NORTE, ES, Brasil, não Patagônia, Argentina) – reclamou João.
- João, não encomprida, não. Dá uma trégua, já estou ficando nervosa.
- Maria, toda vez é a mesma coisa, você mexe nos controles – arrematou Nico.
- Se é por isso, agora estamos no ES – interveio Janice (e lá fora começou a brilhar um sol incrível, mesmo no inverno, sem falar que com as chuvas a luminosidade era incrível).
Betão estava eufórico.
- Sei lá, Guarapari (imitando Djavan). É isso aí, Janice, cê é a maioral.
E com isso a viagem virtual continuou no carro virtual por estradas virtuais com pessoas virtuais até restaurantes virtuais, teatros virtuais, praias virtuais e tudo mais virtual, muito bom.

Viagem Mística (da série Conto Tudo Novo)


Aproximamo-nos do celestial veículo que nos esperava pacientemente, sob as ordenanças de Deus todo-poderoso. Chovera. Gotículas brilhantes como diamante e translúcidas e belas, resplandeciam e emanavam os raios enviados pela fogueira central.
Fui caminhando com minha amada e gentilmente abri a porta da carruagem para ela e ela entrou e sentou-se no banco ao mesmo tempo limpíssimo e macio e a justa medida dos seus merecimentos, que nosso Senhor Celestial houvera por bem acatar. O ar interior recendia a odores maviosos e quase entramos em êxtase.
Circulei o veículo e abri a outra porta, tendo a mesma experiência de sentar-me no delicioso assento, ó glória, ó benção, ó Deus, tudo era tão apropriado, tantas primícias, tantas felicidades proporcionadas, nem merecíamos tanto.
O Sol, o luzeiro posto por Deus, nos iluminava intensamente.
Passei a marcha e apertei o acelerador e se transmitiu poderosa força e o carro tremeu com o impulso energético e as potências divinas o premiam adiante e senti o tremor majestoso e o ardor grandioso que lá de dentro vinham.
Liguei o limpador de pára-brisas. Por um lado havia o pára-brisas que graciosamente impedia que fôssemos tocados pelo furor dos elementos e por outro o limpador e a excelsa paleta que limpava o pára-brisas dos pingos e das gotas que o aguaceiro deitara sobre todo a viatura.
Ó brasão do Eterno e tanto devíamos agradecer.
Passei a segunda marcha e a terceira e a quarta - nos conscientizávamos da pureza do momento, de toda a grandiosidade. Tudo era bom.
Fora dali havia a estrada asfaltada que nos levava em segurança e víamos as flores e as árvores e o lixo que a infelicidade alheia, todavia, nos legava.
Íamos.
Fluíamos no frêmito da estação.



Tinha chovido um pouco, abri a porta para ela, rodeei o carro, entrei, passei as marchas, liguei o limpador, fomos adiante.

Vendo Vovó pela Greta (da série Conto Tudo Novo)


                        A Greta se chamava Greta Santos, mas ela se dizia Greta Garbo, porque dizia que “andava com garbo”, quer dizer, com brilho, galhardia, elegância. Que nada, nem quando era jovem.
Esperou vovó morrer para começar a falar mal dela.
Vovó morreu com 85, a Greta tinha 11 a menos, agora está com 80, acho que em criança gostava de vovô, mas vovô tinha 30, minha avó tinha 20 quando casaram, ficaram casados 50. A Greta tinha 9, vê se pode? Do nada gostou de vovô, ele iria gostar dela? Tinha 30 e ela 9, que doideira, naquele tempo se respeitava, não é como agora com os safados. Meteu na cabeça que vovó estava se metendo entre eles. Que menina doida!
Ficou solteira, solteirona enjoada fingindo que era amiga de vovó só para ficar perto de vovô, tem muita gente doida.
E agora que vovó morreu ela fala pelos cotovelos, a gente está vendo vovó pela Greta. Não dá pra provar que não foi assim, vovô e vovó estão mortos.
Não bastou vovó ter escrito nesses 65 anos esses livros maravilhosos todos de detetives, igual A Gata Triste, embora num nível menor, claro. Vovô era engenheiro de minas, tempos difíceis, as dificuldades para descer nas minas eram outras, não havia nenhuma segurança, não é como agora (e veja que agora ainda acontecem acidentes). Ele contava as coisas todas para ela das andanças e ela ambientava onde podia, não existia a Internet, você sabe, mal existiam caras enciclopédias.
Heroína, minha avó.
Os dois, claro, ela no sentido de ter deixado essa obra extensa. E agora vem essa chata da Greta. É insuportável. Não fui o xodozinho da vovó, mas gostava demais dela, essa Greta tá enchendo o saco. Nunca fez nada na vida, só vive de denegrir os outros, parecem esses biógrafos “desentocando os podres dos gênios”, como aquela gente que fala de Einstein e outros. Largue o pessoal em paz, sua pateta, tenho vontade de dizer, mas não fica bem para alguém caminhando para 50 desacatar uma senhora, embora maluca como a Greta.
Sou obrigado a aguentar.

Chamei os irmãos e irmãs, vamos nos reunir e sem mamãe saber vamos dar um jeito na Grande Greta, a Greta Garbo (ela pensa que é uma grande artista, daí imitar a outra Greta, a Greta estrangeira muito maior). Vou arrebentar com ela, escuta o que estou dizendo. Espere, que você vai ver. Estou falando, não me segure, não aguento mais, vou arrebentar com a Greta. Não me segure, quem aguenta ver a vó pela Greta sem ficar em estado de choque?

Vendendo uma Barbaridade (da série Conto Tudo Novo)


- E aí, vai querer uma barbaridade?
- Quais você têm?
- Tanto tenho das mais leves, quanto das mais pesadas.
- Quais?
- Bem, entre as invendáveis está aquela barbaridade que os filhinhos de papai dos políticos de Brasília fizeram com os índios, tocando fogo neles, terrível, grande barbaridade, não diminui com o tempo, não dá para esconder: por mais tempo que passe e por mais que a gente pinte para ver se melhora, continua impossível passar adiante. Já aquela barbaridade do gás em Bopal, na Índia, não foi tão difícil, já quase esqueceram. E o gás Sarin espalhado no metrô de Tóquio aqui ninguém ouviu falar, foi fácil vender essa barbaridade. Em compensação, se tivessem querido vender lá não teriam conseguido, de modo que às vezes a gente troca.
- Você vende mais para pessoas desinformadas, né?
- Ah, é. As pessoas cultas tem mais tempo e interesse em lembrar, difícil vender pra elas. Você sabe, os ignorantes, que não dão importância ao passado, por vezes aceitam as barbaridades numa boa, assim, sem mais aquela.
- Dá um exemplo.
- Sabe aquela barbaridade dos Gulags?
- Sei, URSS, Sibéria, milhões de mortos, a gente nem sabia.
- Pois então, como foi barbaridade que aconteceu “lá longe”, consegui mascarar e passei pra frente, já ficou menor, foi fácil empurrar pro Esquecimento, ele comprou numa boa. As pessoas acham que nunca vai acontecer perto da gente.
- Não diga! O Esquecimento?
- Foi. Se caiu para o Esquecimento pode cair para qualquer um. Agora mesmo estou tentando empurrar para ele aquela barbaridade do Holocausto. E a Lei Maria da Penha, trazendo tanto alívio às mulheres, vai acabar levando a barbaridade cometida contra as mulheres para o Esquecimento também. Ele absorve muita coisa.
- Perda de Memória também tá nessa, é primo-irmão do Esquecimento, eles trabalham junto do Caos.
- Ih, rapaz, já passei muita coisa pra ele. Infelizmente o Historiador fica patrulhando, mas poucos hoje em dia lêem os relatórios dele. Quem lê não aceita barbaridade de jeito nenhum, nem embrulhando bem, nem enrolando.
- Vá à periferia, lá eles acreditam em qualquer coisa, eles vêem televisão, ouvem rádio, não se lembram de quase nada, a consciência deles é a mais superficial possível, não lêem livros, não sabem nada de geo-história.
- É mesmo, falou tudo. Vou picar a mula pra lá.

Vacina Contra a Raiva (da série Conto Tudo Novo)


No gene Y232A7 os bioquímicos descobriram a fonte da raiva masculina (que nas mulheres opera pouco) e daí foi um passo para descobrir a vacina efetiva contra todo tipo de raiva dos homens.
Prontamente e sem pensar duas vezes os deputados de todo o mundo (eles são psicólogos práticos, não profissionais, não pensam muito nem consultam os pesquisadores) trataram de passar leis obrigando todos os homens a tomar a vacina.
Já não havia mais casos de agressão a mulheres, o que foi uma benção; nem a crianças, o que todos aplaudiram, até os antigos violentos. Nem a idosos (pelo menos por parte dos homens). E já que os homens se tornaram uns doces, as mulheres não receavam impor e superimpor sua autoridade, usando e abusando de suas novas prerrogativas. O número de filhos diminuiu. O número de empresas agressivas também diminuiu.
As pessoas podiam furar filas à vontade, com a única oposição branda e educada das mulheres. Não havia mais exércitos (os pacifistas aplaudiram freneticamente e quiseram canonizar os bio-cientistas e os farmacologistas responsáveis pelo desenvolvimento e propagação da vacina sob inúmeros nomes comerciais), pois foram todos desmobilizados ou eram compostos unicamente de mulheres.
Não havia mais aqueles bate-bocas nos bares, nem ameadas de morte, puxa vida, que alívio. Diminuiu a libido, pelo menos aquela parte que vinha da agressividade.
O boxe e outros esportes agressivos desapareceram, o futebol se tornou um jogo de comadres com muitos “por favor, você primeiro” e “tenha a bondade de pegar a bola” e “desculpe se te feri, tá?”. Não havia mais quebra-quebras nos bares, nem desforras em carteiras escolares, nem muito menos aquelas coisas de americano com gente matando crianças do alto de e telhados. Disso todo mundo gostou.
Houve alívio no mundo inteiro.
A excitação desceu vários degraus, o stress abaixou muito, não havia mais muros, tudo isso foi muito bom. Policiais para quê? As tarefas dos juízes se resumiam a pequenos casos de esbarrões (todos com muitos pedidos de desculpa), as feiras-livres eram um primor de dignidade e complacência, o mais leve estremecer da quietude merecendo o repúdio de todos e cada um.
Os estudos de psicologia reduziram quase a zero, quem iria estudar as receitas domésticas? Os papos de bar eram pura mansuetude, as religiões reduziram seu apelo (não havia mais conselhos a dar visando aquietar os espíritos, todos eles eram quietos por natureza das vacinas).
As atividades socioeconômicas reduziram bastante, pois logo de cara metade vinha de cada par polar oposto-complementar, neste caso tendo sido abolida a raiva.
Tudo agora era (veja o Houaiss eletrônico) “benevolência, calma, calmaria, complacência, equilíbrio, fleuma, impassibilidade, mansidão, pacatez, pacificidade, placidez, resignação, serenidade, sossego, tranquilidade”. Uma beleza. Nada de filmes agressivos. A resignação aprofundou-se, a desilusão com o futuro ampliou. A serenidade atingiu picos, os objetivos foram reduzidos progressivamente, havia cada vez mais gente nos mosteiros e cada vez menos gente para produzir. Os índices de suicídio ampliaram fenomenalmente.
Alguns pararam para pensar que planejar a humanidade não era fácil, mexer em qualquer polo era complicado.
Era preciso pensar muito.

Tudovaicomamão, o Faraó do Decerto (da série Conto Tudo Novo)


Tudovaicomamão era chamado Faraó do Decerto, porque se ele dissesse “decerto”, tudo bem, podia acreditar que era certo mesmo como 2 e 2 são quatro. Se ele ficasse em silêncio, pairava a dúvida, ia pensar, voltava e dizia sim, decerto, ou não, nesse caso você poderia desistir para sempre, ninguém que você contratasse faria dar certo, não dava mesmo, nem com reza brava.
O Faraó Tudovaicomamão partia do princípio que há 25 quadros num filme em cada segundo, então em um minuto são 1.500 quadros; mas a mão era mais rápida que isso, frequência = f = 1/T, sendo T o tempo – ora, neste caso a frequência da mão deveria ser maior que 1/25. Os mágicos sabiam disso e o Faraó Tudovaicomamão sabia disso, tinha estudado física, tinha estado na universidade. Não que você pensa que os melhores e mais tarimbados ladrões não são formados? Pelo contrário, o ladrões de galinha é que são os sem formação nenhuma.
Para começar o Faraó tinha estabelecido um Fundo de Emergência, separava sistematicamente 25 % dos ganhos para defesa no caso de cair em alguma arapuca e como nunca caia esse dinheiro, aplicado num paraíso fiscal onde se encontrava tanta gente boa (Era o Paraíso, o que você iria querer? Todos eram felizes lá, menos os que não iam) foi se tornando montante enorme.
É que o Faraó trabalhava para gente grande e fazia muito dinheiro. Era gente que não regateava, gente rica, riquíssima, gente de bom gosto, ele roubava obras de arte e as substituía por cópias “perfeitas” (quando descobriam não podia falar nada, pois isso mostraria falhas de segurança – os museus estavam repletos de todo tipo de cópias há séculos). Era gente que tinha bilhões e às quais quase nada mais interessava, salvo aquilo que ninguém poderia ter, obras que eram conseguidas para uso exclusivo, emparedadas, colocadas debaixo das casas, deixadas para os herdeiros apreciarem – achava que era desperdício serem vistas por “gente do povo”. Que é isso, minha gente, o povo ter acesso a coisas tão nobres? De modo nenhum.
Contratavam o Faraó. Quadros, peças de cerâmica de milhares de anos, estátuas, livros preciosos, tudo mandavam copiar para colocar o falso no lugar do verdadeiro: o povo ficava com o falso e eles ficavam com o verdadeiro. O povo só tomava contato com falsas verdades, as verdades verdadeiras só eles viam. Já que os governos trabalhavam para os ricos, qual a novidade? Os ricos usavam cortinas de fumaça, mas de marcas boas, eram lindas, muito bem elaboradas.
Na verdade o Faraó era uma espécie de funcionário público dos ricos, só que não batia ponto, cumprindo rigorosamente contra altos pagamentos as tarefas mais espinhosas. É evidente, era esperado, o Faraó Tudovaicomamão ficava com uma parte para ele e quando ele morreu é que o detetive Carter descobriu as coisas acumuladas. Mas aquilo era um infinitésimo do que os ricos tinham pegado para eles.
A imprensa divulgou como se fosse um acontecimento. O que sabe a imprensa? Não passa de outra funcionária do poder.

Truman Capota (da série Conto Tudo Novo)


                        Imitando ou parodiando a família Carlos, Truman “vinha no seu carro quando viu pela frente, na beira da calçada um muro saliente”: bateu no meio fio e na velocidade que vinha a frenagem súbita fez o carro capotar de cabeça contra o muro, derrubando-o, passando para o outro lado e caindo sobre o teto.
Tinha, sim, tinha airbag, mas sendo saco de ar, furou e Truman quase passou desta para melhor; embora não tenha ido para o Céu foi como se fosse, porque depois do hospital foi se recuperar na região de montanhas do ES, terceiro melhor clima do mundo.
Mas isso foi depois.
Pois Truman passou sete meses em coma.
Acontece que Truman era espião, duplo ainda por cima. Ambos os lados o usavam para passar certas mensagens, algumas verdadeiras e inofensivas, outras preparadas para confundir. E ambos suspeitavam que Truman além de servir à esquerda e à direita servia ao misterioso Centro: era como uma cruz, ele estendia um braço à esquerda e outro à direita, mas a maior parte ficava no centro. E ele tinha os pés no chão, não fazia bobagens, não se entregava.
No coma de Truman o governo daqui viu oportunidade única: se ele acordasse com amnésia (foi o que se deu) poderia bolar um esquema de extração dessas memórias profundas sem que ele se desse conta.
Conforme o plano foi se desenrolando, o governo montou uma cidade pequena às pressas e, como se diz, “ficou no aguardo”. Sete meses de coma com três de recuperação, Truman foi conduzido à “sua casa”, à “sua mulher”, ao “seu trabalho”, tudo falso.
De início Truman ainda estava meio tonto, mas foram se passando os meses e ele começou a reparar que chegavam muitos caminhões para lares que supostamente já deveriam existir há anos; e as pessoas compravam muita miudeza. E sua esposa tinha uns escorregões psicológicos difíceis de aceitar. Aquilo foi encucando Truman. Claro, os agentes do governo foram pegando uma coisa e outra na medida em que ele se recuperava, aquelas coisas do Centro.
Truman ficava cada vez mais arredio.
Ficava cismando, ruminava.
Um gesto aqui, outro acolá, uma palavra fora do contexto, Truman (as pessoas brincavam com ele, True-man, homem verdadeiro, logo ele que era espião, mas o nome mesmo viera do presidente americano) aglomerava sua vida antiga. Truman meditava. Aconteciam certas repetições. Treinado como espião pelos dois lados para observar detalhes, Truman duvidava. Os padrões foram se sobrepondo, ele foi se convencendo que estava dentro de uma armadilha, que uma realidade fora dali o manipulava, até que tomou coragem e foi embora, pulou fora do círculo.

Transmissão de Pensamento (da série Conto Tudo Novo)


- Cara, tô com uns pensamentos esquisitos demais.
- Esquisitos? Esquisitos, como?
- Esquisitos, esquisitos. Nem parece coisa minha.
- Já foi ao psicólogo, ao psiquiatra?
- Você acha que eu tô doido?
- De modo nenhum, mas agora eles têm umas máquinas porretas, na realidade são programáquinas, programas-máquinas. Eu mesmo já fui.
- E curou?
- Não curou, mas transformou em impulso suicida. Já convenci três a se suicidarem.
- Rapaz, que coisa maluca.
- É mesmo.
- Pois, então, tão vindo uns pensamentos malucões na minha cabeça.
- Ruim, assim?
- Ruim mesmo. Eles ficam invadindo minha consciência, coisas que nunca pensei em fazer.
- Acho que você tá desregulado.
- Será?
- Só pode. O primo da meia-irmã da minha tia do Pará tava assim. A antena dele desregulou, ele tava zuretinha. Zureta, zureta, zureta. Comportava-se e falava como um buriato, lá da Rússia, queria morar numa yurta, montar a cavalo, ter três mulheres igual os antigos de lá, uma doideira. Pro cara regular foi duro. Teve de ir pra São Paulo.
- Sério assim?
- Foi. A antena dele entrou em curto. Sabe o Nicolelis, aquele brasileiro que em 2028 lançou a neuroprojeção? Ele voltou a São Paulo e colocou a clínica dele lá, o Fábio, esse rapaz, foi se tratar lá. Invasão, meu filho, os neuro-hackers incluem pensamentos na sua cabeça, coisa que você jamais pensou ou imaginou, coisas contrárias ao seu modo de ser. Esse menino era contador, você imagina só ele andando de cavalo pela cidade. Piração pura, sem falar em querer casar com várias ao mesmo tempo, ficava incomodando as moças do escritório. E a tenda que ele armou no quintal da casa? A mulher quase foi embora, armou barraco. Os neuro-hackers são crianças que ficam inventando personalidades pras pessoas, é constrangedor. De quantos bits é a sua chave?
- 128.
- Bom, nem deveria haver problema de violação, pode ser mais desregulação da chave, entra um ou outro pensamento esparso. Falar com o Nico é praticamente impossível, mas você pode teleconsertar com um dos atendentes.
- Custa caro?

- Que nada, tá nos planos.

Toque de Midas (da série Conto Tudo Novo)


Tudo que o Midas tocava virava ouro.
Você tinha se batido de tudo quanto era lado, meditava na questão por meses, escarafunchava, revolvia, se embaraçava, tudo virava um ninho de gato, seus miolos começavam a fundir – você ia ao Midas, se fosse amigo dele, ela dava uma torçãozinha de nada no problema, virava um tiquinho e a coisa toda brilhava sobre esse novo ângulo.
Caramba! Como ele fazia isso?
Ele era diferente mesmo.
Dos amigos e dos parentes não cobrava nada, mas se você tivesse um mínimo de consciência, lembrando das dificuldades que tivera e dos lucros e das facilidades proporcionadas pela solução procurava retornar de alguma forma.
Era coisa estranha.
Não conseguia uma patente? Midas.
Não conseguir prever a bolsa? Midas.
Não sabia em que país investir? Midas.
Tudo que ele tocava virava ouro mesmo, metaforicamente primeiro e, logo em seguida, realmente, porque você enriquecia.
Dos estranhos e dos empresários Midas cobrava, e não era pouco, bastante, mas sempre uma fração insignificante de tudo que os conselhos dele significavam para os proponentes.
Que talento!
A fama dele se espalhou.
As pessoas vinham de longe consultar o Midas. Não importa quão difícil fosse o problema, nem em que área: nos casos mais difíceis ele pedia alguns dias para equacionar e lá vinha com as respostas – os olhos brilhavam de satisfação, a capacidade dele era insólita. As pessoas ficavam boquiabertas, de queijo caído, literalmente.
Ah, é? Como foi que não vi?
Rapaz, dois anos pensando errado, tentando duzentos caminhos diferentes e não vi essezinho daqui, que coisa!
O mundo é grande, tem muita gente, as pessoas vieram em número cada vez maior, foi preciso colocar agenda. Os governos pressionavam, porque também precisavam de ajuda. De fato, ninguém queria mais pensar, já que o Midas SEMPRE achava a solução. Se no começo se embaraçavam DEPOIS DE TENTAR, agora já nem tentavam, tentavam chegar ao Midas. Todo mundo vivia no bem-bom e o pobre do Midas se estourava totalmente.
Bem, qualquer corpo sobre-tencionado acaba deteriorando e dando tilt. Com Midas não foi diferente. Ele foi definhando, já não conseguia comer porque tudo que tocava virava ouro. Ele tinha um dom que se mostrou uma maldição. Midas acabou por morrer.
Agora o mundo tinha um problema duplo: já não tinha Midas para resolver e já não se esforçava por si mesmo.

Terra Média (da série Conto Tudo Novo)


Nesse lugar existia a Terra Média.
Do lado esquerdo da Terra Média ficava, veja, o Lado Esquerdo da Terra Média e do lado direito, também por extrema coincidência, o Lado Direito da Terra Média.
Era por assim dizer um corpo, mas não naquele sentido estrito da matemática, era um corpo extremamente comum em que os lados brigavam e quem pagava o pato era o centro. A Terra Média, como mulher e mãe, sofria com a disputa de seus dois filhos.
O Lado Esquerdo da TM (vamos abreviar) tinha uma raiva horrível do Lado Direito da TM (doravante apenas Lado Esquerdo e Lado Direito, para quem via de dentro). É claro que quem visse de fora via tudo ao contrário, a Direita era Esquerda e a Esquerda era Direita e conforme se movessem no círculo dialético uma ia assumindo o papel da outra. Como Alice, aquela menininha encrenqueira que entrou bem quando entrou no espelho e passou a ver tudo ao contrário, foi parar no país das maravalhas, mistura de maravilhas com navalhas, o Brasil das Maravilhas, aqui também havia muito engano, ninguém conseguia entender como no poder a Esquerda advogava contra suas antigas causas.
A Esquerda queria matar a direita e a Direita queria trucidar a Esquerda, elas não viam que em qualquer situação de vitória o centro ficaria com um lado a menos. Quem sofria era o centro, a Terra Média, que reclamava - essas crianças sem juízo.
Terra Média era mãe, e como outra qualquer, sofria.
Sofria em silêncio, embora pudesse controlar os dois lados se quisesse. Ela acreditava em Livre Arbítrio, a loja do lugar que pregava a Liberdade bem pregada, inclusive para os idiotas que levassem lá. Era assim mesmo que tinha de ser, até os idiotas tinham de ser respeitados na pregação, como Jesus dissera (Está na Bíblia. Onde? Você não vai querer que eu pare agora para procurar, não é? Faça-me o favor!) A Liberdade era um ícone, como a Madonna, cometia um monte de licenciosidades e depois virava santa e judia.
A Terra Média sofria.
Ela era tolerante.
Tolerava quase tudo, inclusive os extremos da Liberdade, essa Licenciosidade de que já falei e a Impunidade, sua irmã gêmea que nasceu apenas um pouco antes. Aonde os extremos da Liberdade chegavam faziam uma arruaça danada que se pensava autorizada, assim como se festa significasse ofensas aceitas.
A Terra Média sofria.

Quando ela impediria que os extremos digladiassem os interesses maiores do Centro? Ninguém sabia.

Superfeliz (da série Conto Tudo Novo)


O Grupo supermercadista Viva Feliz tinha colocado mais um supermercado da felicidade, o Superfeliz.
Como as pessoas nunca se sentiam realmente felizes, por mais que tivessem, por mais que vivessem em bons bairros, por mais saudáveis que estivessem, por melhores que fossem os filhos e os dias, por mais isso e aquilo que lhes houvesse sido proporcionado por Deus ou pelas circunstâncias - a verdade é que poucos se sentiam felizes. Fossem ricos ou fossem pobres, todos iam ao Superfeliz em busca da felicidade.
Logo pela manhã o gerente reunia os funcionários e começava o dia com uma Preleção do Melhor Dia ou do Dia Mais Feliz, aconselhando-os a tratar a clientela da melhor forma possível, afinal de contas ela vinha trocar seu dinheiro, seu suor, seu cansaço por produtos como o MaqueFeliz e o Bobo’s. Todos os empregados viviam rindo, era quase como na televisão.
O Superfeliz oferecia uma ampla gama de inutilidades, de supérfluos, por exemplo, as felicidades-de-plástico que tornavam as vidas de tantos tão satisfatórias, pois as pessoas substituíam o interior pelo exterior, enchiam o interior de nada e tendo nada para se preocupar, com nada se preocupavam, a ideia delas era “levar a vida na flauta”, produto muito vendido que dava grandes retornos aos governos.
O Superfeliz vendia bloqueadores de pensamentos chamados Mídia que iam do fator bloqueador um ao fator 32: as mulheres usavam mais, mas também tinha muito homem usando para evitar a incidência dos raios do Sol iluminador: iluminação, jamais. O bloqueador mais brando era o livro, fator 1, quase inoperante, não impedia a iluminação, às vezes até a favorecia, porque você acabava ficando exposto mais tempo; o mais alto era a televisão, fator 32, não deixava passar quase nada. Internet era fator 2 e assim por diante.
O povo saía superfeliz quando achava que tinha encontrado a felicidade e semana após semana voltava para comprar felicidade, como se fosse uma passagem de ônibus para o Estado de Felicidade onde, por sinal, as pessoas eram muito frugais. O povo pagava caro pela felicidade, mourejava de sol a sol, enfrentava as maiores dificuldades para conseguir o que queria, pois as filas eram grandes, já que os do povo achavam que a felicidade era feita de bens materiais que podiam ser comprados.

Sonho.com (da série Conto Tudo Novo)


- Tem Sonho da Casa Própria?
- Tem, mas você paga o resto da vida.
- Não tem importância, vou querer um, patroa quer a todo custo, os vizinhos entraram nisso.
O cliente sai todo satisfeito por ter sido enganado.
Chega um idealista.
- Tem Sonho de País Bom e Justo?
- Estamos em falta, no Brasil não tem muita saída, o governo não permite importar porque poderia deixar a população embevecida e ela não trabalharia mais em troca de nada. Importação quase proibida, muito vigiada.
O cliente saiu todo decepcionado.
Chega um funcionário público, vê-se que é novo, está entrando no serviço por esses dias.
- Tem Sonho de Chefe Respeitoso e Imparcial?
- Hum, meu filho, isso é TÃO RARO que custa muito, acho que você não vai ter dinheiro.
- Quanto?
Fala um número.
- Vixe! Não tenho como pagar.
- Só as maiores empresas do mundo têm.
O cliente sai chutando as pedras.
Chega mocinha de uns 17 anos, rindo à toa.
- Tem Sonho de Amor de Verão?
- Tem de muitos tipos, mas você tem de entender que é só sonho, não é a realidade, não é promessa, é você que leva e você que paga, não tem devolução de dinheiro. Validade de 90 dias depois que abrir.
- Eu sei. Quero seis.
- Nossa, para suas amigas?
- Não, tudo pra mim.
- Vai pagar com dinheiro ou cartão? Não quer aproveitar Sonho de Amor de Carnaval?
- Cartão, débito. Não, já comprei, vou pra Bahia.
Cliente sai toda feliz.
- Tem Sonho de Congresso Correto?
- Chama a segurança, tem um subversivo aqui, quer subverter a ordem das coisas. Onde o senhor aprendeu essa ideologia estrangeira? Telefona pras forças armadas. Tem um terrorista provocador no recinto. O que o senhor ganha provocando assim nossos congressistas? Teje preso, cerra as portas, liga pro delegado. Aqui é o Brasil, meu filho, você vai ver se aguenta as borrachadas.

Segregação Sexual nos Ônibus (da série Conto Tudo Novo)


Alguém reparou que as mulheres eram muito comportadas em ônibus, ao passo que os homens, não. Então, só a título de experiência, fizeram lotações só de umas e de outros.
No ônibus das mulheres (tudo devidamente registrado por câmaras para formalizar o experimento) elas se sentavam empinadinhas, uma ao lado da outra, lendo ou conversando com a maior educação, a maior civilidade. Quando havia mulheres em pé elas também ficavam comportadas, nunca roçando uma na outra, fora alguma botina devidamente repudiada. Se precisavam passar pediam licença, se necessitavam abrir uma janela (o que raramente acontecia, pois sentiam frio) pediam licença. Enfim, era afável mesmo, coisa fina. Quando ouviam música punham os fones de ouvido.
Em compensação, no ônibus dos homens uns ocupavam mais que sua metade da cadeira, ficando meia bunda do outro da esquerda ou da direita pendente ao lado do corredor. As janelas estavam todas abertas, claro. Quem ficava na cadeira do corredor estendia a perna e o joelho adiante, incomodando os demais. Quem estava de pé ficava roçando no ombro de quem estava sentado na cadeira do corredor e este ia mais para dentro, esbarrando no da janela. Uns palitavam os dentes, outros ouviam música funk, rap ou gospel a toda altura. Embora já estivesse ventando muito, um abriu o quebra-vento de teto. No fundo do ônibus as cadeiras 1, 3 e 5 estava ocupadas, com separação regulamentar entre elas, e ninguém queria sentar na 2 e na 4: foi um custo, pois os outros abriam as pernas. Uns arrotavam, outros peidavam, outros cuspiam contra o vento.
E travou-se este diálogo.
- Cara, você tá gostando de roçar no meu ombro?
- Não tô roçando no seu ombro.
- Tá sim, que eu tô vendo e, pior, estou sentindo, cê tá gozando?
- Também tô vendo.
- Tem um veadinho me empurrando.
- Fala com ele, porra.
- Ei, cabra, pára de me empurrar que o distinto aqui na minha frente tá incomodado.
- É que não há espaço, o sacana aqui da frente tá com as pernas abertas.
- Quem é sacana?
- Você, porra.
- Se eu tô com as pernas abertas é que o sujeitinho aqui do meu lado tomou uma cadeira e meia, essa baleia, tomara que ela entre em extinção.
O motorista dá uma “freada de arrumação”, todo mundo é projetado para frente pela inércia.
- Motor, seu corno, por acaso alguém aqui é boi?
MOTORISTA (grunhindo baixinho) – só pode.
- O que você disse?
- Ih, vamos parar com essa avacalhação que eu tô querendo chegar ao serviço sem dor de cabeça, ficam essas mulas tocando música alta.
- Avacalhação o cacete.
- É sim, seu merdinha, tem lei contra isso, tá sabendo? Me deixe chegar até você que você vai ver (vai empurrando os outros, que trancam).
- Não empurra, não seu cocô.
- Vem, tio, vem, nós vamos te cobrir de porrada.
- Vocês e quantos mais, seu merdinha?
- Ó, se vocês aí da frente não pararem com essa frescura ou vou aí, tá bom?
Era um cara enorme, todos pararam um pouco.
Um cuspiu pra fora, o cuspe voltou no cara de trás.
- Puta merda, você cospe dentro de casa, seu bosta?
- Cuspo, sim, e daí?
- Não sei como sua mulher te aguenta.
- Melhor do que você, seu coisa ruim.
- Quer chamar pra briga, chama logo, seu safado.
Nisso um peidou.
- Cê tá podre, meu nego, pode cuidar da alma que o corpo já era.
Um arrotou pesado, cuspiu uma ostra que felizmente grudou na janela pelo lado de fora, por sorte não entrou, ficou ali, enorme e ostensiva, desafiando os passageiros.
Um deu um cascudo no da frente, pensando que era um amigo, o outro virou e deu-lhe uma só, direto no nariz, e daí para frente a briga desandou, as câmaras foram quebradas e não se pode ver mais nada. Foram todos parar na delegacia, seis ainda estão presos, dois foram para o hospital, um está na UTI e outro foi medicado e foi para casa.
A experiência não deu certo, os psicólogos concluíram que de certa forma a presença das mulheres acalma os homens, de modos que a segregação falhou. 

Secretária Eletrônica (da série Conto Tudo Novo)


Jovanildo chegou ao escritório, a secretária eletrônica deu os recados.
- Tem 32 recados.
E foi falando um por um, ele dizia o que fazer: joga no lixo, guarda na caixa dela, depois respondo, etc.
Terminou.
- Maria, você poderia ligar o computador?
- Perfeitamente, Jova.
- Hora dessas o pessoal vai estranhar.
- Estranhar por quê?
- Essa intimidade.
- Você quer que eu diga “senhor” e “o senhor”, “senhor Jovanildo”?
- Não, só tou dizendo procê prestar atenção.
- O computador tá ligado.
- Pega aquela pasta do Recurso Extraordinário ao Superior Tribunal. Você fez as correlações estatísticas que pedi?
- Fiz, perto de 1, certeza quase total, erro de 2,8 % nas medidas e o réu nem esteve perto do bailão.
- Não acredito! Eles deixaram passar essa?
- Deixaram. Causa ganha, chance zero de o juiz recusar; e pela minha avaliação vai passar uma descompostura no investigador.
- Ah, isso é muito bom, aquele safado recebeu grana.
Ela não falou nada.
- Maria, que cê acha de à noite à gente ir ao bar?
- Eu?
- É, você mesma.
- Você acha prudente? O que o pessoal vai pensar?
- Meus amigos tão fora e preciso de companhia.
- E sua esposa, não vai reclamar?
- Pare com isso, conto tudo a ela.
- Conta?
- Claro.
- Tem outro problema, se a gente for beber cerveja vou ter de ir ao banheiro de hora em hora.
- E daí? Vá.
- É que aquele bar não tem banheiro privativo para as mulheres, entendeu?
- Você tem receio de que elas se assustem vendo que você é robô?
- No mínimo, né, e a gritaria?
- Tranca a porta por dentro.

Reunião da Família Berto (da série Conto Tudo Novo)


O avô Zero Berto faria 80, o filho Um Berto 50, o neto Dois Berto (que alguns chamavam de Disberto para implicar com o personagem ou vice-versa) 20 anos, diferença de 30 entre cada um, coincidência, mas não aniversariavam no mesmo dia, nem no mesmo mês, isso não, que seria abusivo. Dentro de seis meses os três, já estava bom, decidiram comemorar e chamar toda a família Berto.
Boquia Berto vivia admirado com tudo, ah, ah, ah, aquele bocão aberto de idiota, ô raiva, vivia estudando filosofia, quando bebia ficava assim mel-ditativo olhando pro espaço.
 A. Berto era o cagado da sorte, ganhava na loteria a torto e a direito, mas não fazia bilhete de loteria nem pule de bicho com ninguém, o filho de uma égua.
O Li Berto achava-se o rei da cocada preta, vivia proclamando a independência econômica, vá tomar.
O Co Berto e o Desco Berto eram irmãos gêmeos, o que um fazia o outro desfazia, uma chatice, viviam às turras, era de encher a paciência, Deus nos acuda, ninguém aguentava.
O Enco Berto era da polícia, vigiava os outros e usava a Bicoa Berto para entregar a todos, era preciso ficar de olho muito aberto, com as antenas ligadas na presença dos dois, nem tinham vergonha, fazer isso com a família!
O Entrea Berto e o Raboa Berto eram os Bertoiolas, ninguém queria falar com eles, faziam de tudo para “cortar volta”.
A Recéma Berto tinha casado recentemente, enquanto a Semia Berto tinha transado antes de casar. Fronta Berto tinha uma mancha na testa, uns diziam que era AIDS, mas ninguém tinha coragem de perguntar.
Enfim, família é família, ninguém está aí mesmo para criticar pela frente, mas depois o pau ia comer por trás (hi, hi, hi).
Tios, tias, parentes, apareceram todos para beber de graça e comer de graça, sem um presente que fosse, mas vovô Zero Berto desejou uma festança, provavelmente não emplacaria 90, embora o pai tivesse chegado quase a 100, eram outros tempos, sem tanta pressão, nem de longe, não havia chance, mas bem que ele sonhava.
Podendo gastar o dinheiro do pai o filho não se fez de rogado, gastou com força, o neto chamou os amigos, foi um bafafá dos diabos, gente rolando na grama, o vovô Zero não estava nem aí, os outros que iam limpar, ele ria, no final da vida e sem responsabilidades ele só fazia rir.

Regras da Fésquisa (da série Conto Tudo Novo)


“Se forças místicas, que podem ser comparadas a espíritos, animam a natureza, o homem poderá exercer ação sobre ela como age sobre os seres espirituais, através de palavras e gestos apropriados”. Félicien Challaye, As Grandes Religiões, 6ª edição, São Paulo, IBRASA, 1981, p. 37, e a nota de rodapé “fluído constituinte das virtudes das coisas e dos seres, força cega que os iniciados conseguem canalizar para seu proveito e da qual chegam a extrair à vontade efeitos benéficos e danosos” (op. Cit., págs. 90-91, Kreglinger).
 ***


- Nimo, não sei o que está dando errado...
- O que foi?
- As experiências não estão dando certo.
- Seguiu as regrinhas do manual?
- Claro.
- Rezou para o seu totem de manhã?
- Sim.
- Fez as abluções?
- Sim.
- Então não sei. Prestou atenção às recomendações de São Darwin? E de São Bacon?
- Evidente. E às do Perfeito Newton e às do Perfeito Einstein também. Definitivamente tem algo errado.
- Bem, temos de pensar. Vazou algum mana seu? Mediu com o manâmetro?
- Sim, 87 %.
- Nossa! Quem é seu guia de terreiro?
- Pai José de Oxalá.
- Você tá indo de graça ou tá pagando?
- Plano de Saúde Espiritual, UNIMÁGICA.
- Ah, muito bom, também tou nele. N’gama, alguém colocou sal grosso procê?
- Que eu saiba, não.
- Foi na benzedeira?
- Não, faz tempo.
- Então é isso! O fluxo de fluído espiritual está obstaculizado. Caramba, N’gama, uma coisa elementar dessas, as matrizes de ADRN jamais vão se combinar se você não operar com força mística suficiente. Você já tá velho nisso: tá contaminado e se não for fazer as pazes com os totens e os deuses, ah, meu filho, você jamais vai conseguir. Por um lado sua fé tá baixa, por outro lado tá entupido, tá constipado, o mana não flui.
- Como assim?
- Mas tá na cara! Seu nível de mana tá alto, mas tá estancado, já passei por isso. Você tá com insônia?
- Tô, mainha tá até reclamando de eu ficar andando pela casa.
- Eu sabia! Potencialmente seu mana está alto e como você é boa pessoa ele só vai fazer é subir mesmo, você fica excitado, excitadíssimo, cheio de ideias, mas o mana não flui, entende, contamina seus órgãos, pode até provocar doença física cardiovascular. Aconteceu comigo, quase tive um troço, se não fosse a benzedeira abrir os canais, os caminhos, eu teria me dado muito mal, não conseguia resolver os mínimos problemas de física espiritual, não conseguir projetar misticamente máquina nenhuma, foi lamentável. Como você espera agir sobre as coisas e os seres, como pretende colocá-los em combinação, fazê-los interagir, se não consegue mana para as palavras-de-ligação? Ah, meu filho, computadores e calculadoras, programas e bons laboratórios espirituais de nada vão servir se os fluxos de mana estiverem obstruídos, se os canais tiverem estreitado.
- Puxa, Nimo, já estava ficando encucado, vou hoje mesmo. São Watson e São Crick que tem abençoem.

Quando Elvis Desceu à Terra (da série Conto Tudo Novo)


Era o primeiro show de Elvis em muito tempo.
A amiga dela a convidou.
- Vamos? É no Ibirapuera.
- Não sei, pegar avião abarrotado, sei não. E ele é bem antigo.
- Por isso mesmo, você só ouve no TV, no rádio, no computador, no MP58, sei lá, nunca é ao vivo, nunca é cara a cara, tudo muito artificial.
- E ele convence mesmo?
- Se convence, tá brincando? E eu já te convidei pra alguma roubada? Ademais, podemos conseguir uns caras lá pro nosso jogo.
- Bem, aí até que pode ser, preciso bater uma pelada.
Foram, Elvis estava esfuziante, magrinho, tanquinho, todo saradão, o clássico Elvis. Levaram a avó de Mariana e o avô de Marquinho, um vizinho de Clarice.
- Caramba, o show tá legal demais. Nós vamos bombar com os garotões.
- Não com esses dois a tiracolo.
- Cê tá brincando, quem não gosta de netinha que cuida do avozinho? É só amor pra dar, tá no papo, já conversei com um cara ali, ele trouxe a tia-avó.
- E aí, na hora do pega-pega, eles vão ficar com quem?
- Fica fria, já combinei com o taxista.
Elvis arrasou mesmo. Duas horas e meia de show de arrebentar os canecos, a velharada tava vibrando, sem falar que muitos dos jovens, até menores acompanhados dos pais e das mães e mais o pessoal de meia-idade, que gostaram das músicas antigas, puxa, foi demais.
Final do show um cara de 27/28 se aproximou.
- E aí, gostaram?
- MUITO BOM. Bom demais. Onde eles encontraram esse cara?
O garoto estava rindo à toa.
- Não foram “eles”, fomos nós.
Clarice ficou impressionada (que sorte).
- Vocês, fala sério!
- Nós mesmos, eu os o manos.
- Tem mais de você?
- Tem, vou ligar (ligou e o outro, que estava na multidão mesmo, se chegou até o emissor de luz de sinalização).
- Alberto, Clarice, Mariana (nisso os avós já tinham sido expulsos).
- Fala aí, gente.
- Iêba, dois pares. Não que foram vocês que encontraram o Elvis?
- Foi, sim.
- É de que bairro?
Os dois estavam sorrindo, quase rindo, parecendo que iriam ter uma crise de riso, que iriam gargalhar.
- Bairro nenhum, trabalhamos no Tatuapé ou Tatu de ônibus, que ainda não temos carro nosso, só emprestado pelo pai, mas vamos comprar. É uma firma muito boa.
- Então, descobriram ele no Tatuapé?
- Não, nós TRABALHAMOS LÁ.
- E trabalham no quê?
Apontam para o Elvis.
- São professores de ginástica.
- Não, trabalhamos NELE.
A luz se faz para as duas.
- Não é possível.
- É sim, inteirinho.
- Vocês FIZERAM ele?
- É claro que sim, das unhas aos cabelos.
- Caramba, não sabia que o Brasil tava nessa. Já tinha ouvido falar, mas nunca no Brasil.
- Ham, vocês estão por fora, não só esse daí, mas muitos políticos, muitos governantes são teleguiados tanto de dentro quanto de fora.
- Rapaz, estamos admiradas (elas estavam caidinhas, tavam no papo, caíram de boca aberta). Quanto custou?
- Bem, é um trabalho de mestrado, os professores acompanharam e tudo, mas nós que fizemos, tivemos a ideia de reproduzir antigos cantores, dançarinos, artistas, toda a gente das tecnartes. Não sabemos quanto custou, é material do laboratório. Pensamos em alugar para festinhas de aniversário, casamento, todo tipo de show. Se o Elvis convenceu faremos muito mais, não é?
Mariana olhou para Clarice, que olhou de volta estupefata (são esses dois, vamos pegar pra nós).
- Você trabalham numa indústria de robôs?
- Certíssimo, Robotrom.
- A Robotrom, AQUELA Robotrom?
- Não existe outra.
Nesse instante Elvis tinha descido à terra para dar autógrafos.
- Vamos prum barzinho?
-Vambora.