Alfredo e Alfredo
se conheceram em certo dia de outubro, dia de primavera, "a prima-Vera tinha
apenas chegado", eles riram.
Passaram a
compartilhar tudo, não ficavam um instante separados. Eram carne-e-unha,
inseparáveis mesmo. Aonde um ia o outro ia também. Eram o oposto um do outro,
mas justamente isso era motivo de alegria, porque a distância podia ser
preenchida pelo que um sabia e o outro não. Viveram assim em idílio por uns
três anos e meio. A coincidência suprema de serem da mesma cidade e até do
mesmo bairro, além de terem a mesma idade, 36, quando souberam um do outro, os
fazia felizes. Viviam se elogiando, como fazem os artistas cariocas e
brasileiros em geral.
Porém, certo dia
Alfredo achou que Alfredo tinha sido deselegante com uma amiga, uma palavra
malposta, um palavrão na hora errada tinha começado a inimizade dos dois.
Ademais de desbocado Alfredo não tinha nenhum escrúpulo em transar com qualquer
mulher bem na frente dele. Alfredo, não, Alfredo era cuidadoso; esperava
Alfredo dormir para sair e se encontrar com as namoradas. Sempre fora assim.
Quando Alfredo descobriu ficou puto.
- Porra, cara,
você é traíra mesmo, né?
- É que você é muito
desagradável, Alfredo. Por quê você tem que atacar as pessoas?
- Não tenho que
te dar satisfação, não, vá tomar no cu, porra.
- É porisso
mesmo que eu não gosto mais de sair com você.
Então, de choque
em choque eles foram ficando cada vez mais estranhos um ao outro. Moravam na
mesma casa, mas não se toleravam. Brigavam com uma constância de deixar os
vizinhos encabulados, o Alfredo apaziguador e o Alfredo fazendo de tudo para
brigar, xingando, batendo nas paredes, até que um dia os vizinhos incomodados
com a barulheira chamaram a polícia. Não teve jeito de separar os dois, mas
eles prometeram baixar a bola. O Alfredo sofria, coitado, com a truculência do
outro.
- Vai se fuder,
seu viado, cê parece boiola. É uma frozinha, mesmo.
Até falar errado o
Alfredo falava, para grande constrangimento do Alfredo, que sempre cuidara de
falar um português o mais correto possível, até em conversas de mesa de bar.
Aliás, ficara
insuportável ir com o Alfredo aos bares.
Os amigos de um e
do outro reclamavam.
- Porra,
Alfredo, esse Alfredo é um chato de galocha, cara, manda ele embora.
Ou, então:
- Alfredo, fica quieto, merda, cê
tá atrapalhando, vá se juntar com a sua turma de frutinhas.
Quando era o
Alfredo que ia às reuniões da turma do Alfredo, era esta que não agüentava.
- Alfredo, o
Alfredo não gosta de vinho, não gosta dos nossos tira-gostos, não gosta do
nosso papo, por quê você traz esse cara?
Virou um inferno
total.
Um dia alguém sem
mais nem menos falou em separação.
Todo mundo achou
impossível, apesar de tudo, mas a idéia permaneceu e foi evoluindo, os amigos
juntando lenha na fogueira.
- Ô, Alfredo,
esse cara não te merece, larga dele.
Até passaram a
chamar um de Alf e o outro de Fredo. Alf era o “chato demais”. Fredo era o sujo,
o porqueira, o ordinário. Foi só dar nomes separados para a idéia de separação ir
sendo incrementada até o ponto em que os dois não se suportavam mais, tentavam
viver em horários opostos, um de dia e outro de noite. Que não poderia
continuar assim não poderia mesmo, porque o dia foi dividido em duas porções de
doze horas. Descontando quatro de sono, mais o tempo de tomar banho, as
necessidades fisiológicas, trânsito, sexo e outras, como é que ficava o
trabalho? O cansaço estava se tornando cada vez maior.
Até que chegou o
tempo em que Alfredo e Alfredo só concordavam em uma coisa: viver junto não dá
mais.
Procuraram uma
clínica neuropsicológica e promoveram mesmo a separação. O problema maior nem
foi clonar um corpo, o que já era relativamente trivial; o problema foi separar
as memórias comuns – quem iria ficar com o quê, de antes dos 36? O que era de
um e o que era de outro? Se fosse dada a mesma memória a ambos eles teriam de
conviver com os mesmos amigos de antes daquele ano, sem falar nos pais e
parentes: como ir visitar mamãe e papai e encontrar o detestado Alfredo lá? Sem
falar na quantidade de psicólogos, psiquiatras e psicanalistas que foi preciso
reunir para fazer a separação.
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