Sunday, October 27, 2013

Malícia Musical (da série Expresso 222..., Livro 1)


Malícia Musical

 

                        Geralmente vindas do Nordeste brasileiro, as músicas que têm duplo ou triplo sentido, constituem um repertório vasto e certamente muito engraçado, expressando a vivacidade de um povo de forma jovial, cordial, fantástica e bela, que no Sudeste é cruel, afrontosamente sexual, boçal e feia.

                        Como tudo que é popular, é pouco estudado pelas elites, se o é, exceto como novo modo de dominância e exploração. Como com a literatura de cordel, não houve chance de aparecimento de grandes livros onde sejam pesquisadas essas músicas, quer dizer, suas letras e melodias, o que é de estarrecer, porque certamente noutros lugares os acadêmicos terão vasculhado seus povos, o que é importante não apenas em si mesmo, como devoção ao povelite/nação, mas como motivo para a constituição de novas bases de exploração (veja só que termo os capitalistas usam! – indica dois brasis) ou participação (o que seria muito mais justo – indicaria unidade) econômica/sociológica, quer dizer, produtiva/organizativa.

                        Qual a razão de colocarem um duplo sentido nas frases?

                        A primeira é a fuga à censura, porque em geral tem conotações sexuais. Mas não só. Juca Chaves é um mestre nisso, e as razões dele são as de castigar os regimes ditatoriais, como na pergunta da época da ditadura militar: “Como se mede um burro? Mede-se (Médici, o general-ditador da ocasião) da cabeça aos pés”.

                        A segunda é a esperteza do autor, de criar palavras ou conjuntos de palavras homófonas, que têm o mesmo som, mas significados diferentes, de tal modo a que ao inocente nível exterior correspondam picantes níveis interiores, decifrados conforme a competência da audiência.

                        A terceira é a resistência local do povo à dominância de outras regiões, formando uma cultura paritária, mas divergente, que coabita e aprecia as outras, mas não se rende. Enfim, é um não à homogeneização cultural/nacional.

                        A quarta é o desafio explícito à burguesia, posto na expressividade popular, que diverge notavelmente da comportadinha e iuppie manifestação letrada oficial.

                        Eles não são, nem de longe, bobos, o que, pensando bem, seria mesmo de esperar, dado que sobrevivem frente a uma tecnociência muito mais poderosa com seus sentimentos “obsoletos”, “arcaicos”, “pueris”. Essa malícia musical tem, conseqüentemente, VALOR DE SOBREVIVÊNCIA PSICOLÓGICA, isto é, constitui todo um dialeto não violentado pela cultura homogeneizante, capitaneada pela Globo. Em termos americanos seria underground, subterrâneo. Eis ai algo autenticamente revolucionário, que sequer é tomado como tal.

                        A Academia passa por cima disso tudo, a cultura/nação de base, sem dar a mínima bola, sem um fragmento de reflexão sobre as profundidades dela, o que além de ser um pecado, relativo ao orgulho, é perda de substância e de propriedade de toda uma ampla área desconhecida. Os pesquisadores cooptados pela burguesia estão longe de conhecer a totalidade do país, talvez felizmente.

                        Em resumo, há uma quantidade de áreas não tocadas pela P&D brasileira das universidades e empresas, o que acaba por nos salvar da generosa mediocridade dos plutocratas.

                        Vitória, sexta-feira, 26 de abril de 2002.

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